Salta con la camisa en llamas



Novembro de 2005 - Rio Tejo, tão poluído!




                        Salta con la camisa en llamas
                        de estrella a estrella,
                        de sombra en sombra.
                        Muere de muerte lejana
                        la que ama al viento.


                        Alejandra Pizarnik, Árbol de Diana







Aquele que acredita...



Julho de 2005



Aquele que acredita no girassol não meditará dentro de casa.
Todos os pensamentos de amor serão os seus pensamentos.


René Char, A Religião do Girassol
Trad.: Jorge Sousa Braga







deixa o tempo fazer o resto



Agosto de 2005




deixa o tempo fazer o resto
fechar janelas
aplacar os barcos
recolher os víveres
semear a sorte
acender o fogo
esperar a ceia

abre as portas: lê a luz
a sombra, a arte do passarinheiro

com três paus
fazes uma canoa
com quatro tens um verso,
deixa o tempo fazer o resto.


Ana Paula Inácio, Vago Pressentimento Azul Por Cima







A MÃO NO ARADO



Novembro de 2005




Feliz aquele que administra sabiamente
a tristeza e aprende a reparti-la pelos dias
Podem passar os meses e os anos nunca lhe faltará

Oh! como é triste envelhecer à porta
entretecer nas mãos um coração tardio
Oh! como é triste arriscar em humanos regressos
o equilíbrio azul das extremas manhãs do verão
ao longo do mar transbordante de nós
no demorado adeus da nossa condição
É triste no jardim a solidão do sol
vê-lo desde o rumor e as casas da cidade
até uma vaga promessa de rio
e a pequenina vida que se concede às unhas
Mais triste é termos de nascer e morrer
e haver árvores ao fim da rua

É triste ir pela vida como quem
regressa e entrar humildemente por engano pela morte dentro
É triste no outono concluir
que era o verão a única estação
Passou o solidário vento e não o conhecemos
e não soubemos ir até ao fundo da verdura
como rios que sabem onde encontrar o mar
e com que pontes com que ruas com que gentes com que montes conviver
através de palavras de uma água para sempre dita
Mas o mais triste é recordar os gestos de amanhã

Triste é comprar castanhas depois da tourada
entre o fumo e o domingo na tarde de novembro
e ter como futuro o asfalto e muita gente
e atrás a vida sem nenhuma infância
revendo tudo isto algum tempo depois
A tarde morre pelos dias fora
É muito triste andar por entre Deus ausente

Mas, ó poeta, administra a tristeza sabiamente


Ruy Belo,
in Poemas de Ruy Belo
ditos por Luís Miguel Cintra


- Esteve:
A Mão no Arado
Voz: Luís Miguel Cintra - pode-se ouvir em http://tecum.multiply.com








Amore, oggi il tuo nome



Novembro de 2005



Amore, oggi il tuo nome
al mio labbro è sfuggito
come al piede l'ultimo gradino...

ora è sparsa l'acqua della vita
e tutta la lunga scala
è da ricominciare.

T'ho barattato, amore, con parole.

Buio miele che odori
dentro diafani vasi
sotto mille e seicento anni di lava -

ti riconoscerò dall'immortale
silenzio.


Cristina Campo



                        Amor, hoje teu nome


                        Amor, hoje teu nome
                        a meus lábios escapou
                        como ao pé o último degrau...

                        Espalhou-se a água da vida
                        e toda a longa escada
                        é para recomeçar.

                        Desbaratei-te, amor, com palavras.

                        Escuro mel que cheiras
                        nos diáfanos vasos
                        sob mil e seiscentos anos de lava -

                        Hei-de reconhecer-te pelo imortal
                        silêncio.


                        Cristina Campo. Trad.: José Tolentino Mendonça







MARESIA



Novembro de 2005




Neste mar à minha frente
O sol repousa e os nossos olhos dormem…

- Caem saudades mortas como chuva miúda,
Ou sobem, trémulas, como o vapor das algas,
Ou ficam, extáticas, como um bafo da areia,
Calmas, sobre a paisagem,
Como um véu de cambraia deixado…

Não sei se é o calor das algas,
Se é o bafo da areia que baila,
Ou se é a chuva miúda que cai neste dia de sol
Como um véu de cambraia deixado,

Sei que me lembram os signos do Zodíaco
Em boa caligrafia,
Uns signos como nem sequer eu tinha imaginado!...

E este calor que dimana da terra e nos confunde com ela,
Nos aquece as pernas de encontro à areia, numa vida exterior
Com mais sangue que a nossa e, sobretudo, cheia
Duma inconsciência que se não parece com nada,
Esta respiração pausada como as ondas, de trás para diante
Fazendo, lentas, e desfazendo
A mesma curva humaníssima e sensível,
Faz-me escrever, devagar, e com letra de menino pequeno
Sobre o chão acamado, esta palavra.

AMOR.


António Pedro
In Rosa do Mundo
2001 Poemas para o Futuro








Daqui a pouco acaba o dia



Novembro de 2005



Daqui a pouco acaba o dia.
Não fiz nada.
Também, que coisa é que faria?
Fosse o que fosse, estava errada.

Daqui a pouco a noite vem.
Chega em vão
Para quem como eu só tem
Para contar o coração.

E após a noite a irmos dormir
Torna o dia.
Nada farei senão sentir.
Também que coisa é que faria?


Fernando Pessoa, Poemas dispersos







CORAGEM



Mina Anguelova - emptyness of youth
Mina Anguelova (fragmento) - daqui




É preciso arranjar outros
motivos
outras flores e astros

Outras abertas

Entre a chuva cansada de um Outono
que não sabe já
qual é a terra certa

É preciso pensar outras imagens
outras fissuras, sítios
e cidades

Pôr fim ao lamento deste vento
tentar tirar ao anjo
a túnica e o sabre

É preciso inventar outras paisagens
outros montes e águas
outras margens

Abrir e expor o coração
e finalmente deixar
correr as lágrimas


Maria Teresa Horta, Destino

Beijão, Mina







HÁ-DE FLUTUAR UMA CIDADE NO CREPÚSCULO DA VIDA



Novembro de 2005




há-de flutuar uma cidade no crepúsculo da vida
pensava eu... como seriam felizes as mulheres
à beira-mar debruçadas para a luz caiada
remendando o pano das velas espiando o mar
e a longitude do amor embarcado

por vezes
uma gaivota pousava nas águas
outras era o sol que cegava
e um dardo de sangue alastrava pelo linho da noite
os dias lentíssimos... sem ninguém

e nunca me disseram o nome daquele oceano
esperei sentada à porta... dantes escrevia cartas
punha-me a olhar a risca de mar ao fundo da rua

assim envelheci... acreditando que algum homem ao passar
se espantasse com a minha solidão

(anos mais tarde, recordo agora, cresceu-me uma pérola no
coração, mas estou só, muito só, não tenho a quem a deixar.)

um dia houve
que nunca mais avistei cidades crepusculares
e os barcos deixaram de fazer escala à minha porta
inclino-me de novo para o pano deste século
recomeço a bordar ou a dormir
tanto faz
sempre tive dúvidas de que alguma vez me visite a felicidade


Al Berto, O Medo


- Esteve:
voz: Al Berto
música: Francisco Ribeiro
os poetas - entre nós e as palavras - pode-se ouvir em http://tecum.multiply.com








I´m depressed



Novembro de 2005




I am depressed, O so depressed.
I got the porche and extend my fingers
Over the taut skin of night.
The lamps that link are dark, O so dark.
No one will introduce me to the sunlight
Or escort me
To the sparrow´s gathering.
Commit flight to memory.
For the bird is mortal.


Forugh Farrokhzad



                        OPRESSÃO


                        O meu coração está carregado, carregado.

                        Vou até à varanda, os meus dedos afagam
                        a pele tensa da noite.
                        As luzes da comunicação apagaram-se,
                        as luzes da comunicação apagaram-se.

                        Ninguém me levará ao sol
                        ou me apresentará o carnaval dos pardais.

                        Relembra o voo:
                        o pássaro em si é mortal.


                        Forugh Farrokzhad. Versão de Vasco Gato








Quando falamos de amor



Outubro de 2005




Quando falamos de amor
de que amor
falamos?

Quando esperamos realizar
a nossa
esperança
de que esperança nos cremos
portadores? A que verdade
supomos esperançar-nos?

Quando falamos da fonte
e a madrugada
sabemos se haverá água
nas manhãs?

Agarrados ao fogo das palavras
afogamo-nos
supondo ter a margem
sob os dedos?


Egito Gonçalves, O Fósforo na Palha







para ti, amiga



15-11-2005. Parabéns, Cilinha



[...] puisque c'est elle que j'ai arrosée.


Le Petit Prince, Antoine de Saint-Exupéry




Meu beijo de parabéns, Cilinha.







OS BARCOS



Novembro de 2005




Dormem na praia os barcos pescadores
Imóveis mas abrindo
Os seus olhos de estátua

E a curva do seu bico
Rói a solidão


Sophia de Mello Breyner Andresen, Coral







Domingo



novembro de 2005




Quando chega domingo,
faço tenção de todas as coisas mais belas
que um homem pode fazer na vida.

Há quem vá para o pé das águas
deitar-se na areia e não pensar...
E há os que vão para o campo
cheios de grandes sentimentos bucólicos
porque leram, de véspera, no boletim do jornal:
«bom tempo para amanhã»...
Mas uma maioria sai para as ruas pedindo,
pois nesse dia
aqueles que passeiam com a mulher e os filhos
são mais generosos.
Um rapaz que era pintor
não disse nada a ninguém
e escolheu o domingo para se matar.
Ainda hoje a família e os amigos
andam pensando porque seria.
Só não relacionam que se matou num domingo!
Mariazinha Santos
(aquela que um dia se quis entregar,
que era o que a família desejava,
para que o seu futuro ficasse resolvido),
Mariazinha Santos
quando chega domingo,
vai com uma amiga para o cinema.
Deixa que lhe apalpem as coxas
e abafa os suspiros mordendo um lencinho que sua mãe lhe bordou,
quando ela era ainda muito menina...
Para eu contar isto
é que conheço todas as horas que fazem um dia de domingo!
À hora negra das noites frias e longas
sei duma hora numa escada
onde uma velha põe sua neta
e vem sorrir aos homens que passam!
E a costureirinha mais honesta que eu namorei
vendeu a virgindade num domingo
— porque é o dia em que estão fechadas as casas de penhores!

Há mais amargura nisto
que em toda a História das Guerras.

Partindo deste princípio,
que os economistas desconhecem ou fingem desconhecer,
eu podia destruir esta civilização capitalista, que inventou o domingo.
E esta era uma das coisas mais belas
que um homem podia fazer na vida!

Então,
todas as raparigas amariam no tempo próprio
e tudo seria natural
sem mendigos nas ruas nem casas de penhores...

Penso isto, e vou a grandes passadas...
E um domingo parei numa praça
e pus-me a gritar o que sentia,
mas todos acharam estranhos os meus modos
e estranha a minha voz...
Mariazinha Santos foi para o cinema
e outras menearam as ancas
— ao sol
como num ritual consagrado a um deus! —
até chegar o homem bem-amado entre todos
com uma nota de cem na mão estendida...

Venha a miséria maior que todas
secar o último restolho de moral que em mim resta;
e eu fique rude como o deserto
e agreste como o recorte das altas serras;
venha a ânsia do peito para os braços!

E vou a grandes passadas
como um louco maior que a sua loucura...
O rapaz que era pintor
aconchegou-se sobre a linha férrea
para que a morte o desfigurasse
e o seu corpo anónimo fosse uma bandeira trágica
de revolta contra o mundo.
Mas como o rosto lhe estava intacto
vai a família ao necrotério e ficou aterrada!
Conheci-o numa noite de bebedeira
e acho tudo aquilo natural.
A costureirinha que eu namorei
deixava-se ir para as ruas escuras
sem nenhum receio.
Uma vez que chovia até entrámos numa escada.
Somente sequer um beijo trocámos...
E isto porque no momento próprio
olhava para mim com um propósito tão sereno
que eu, que dela só desejava o corpo bom feito,
me punha a observar o outro aspecto do seu rosto,
que era aquela serenidade
de pessoa que tem a vida cheia e inteira.
No entanto, ela nunca pôs obstáculo
que nesse instante as minhas mãos segurassem as suas.
Hoje encontramo-nos aí pelos cafés...
(ela está sempre com sujeitos decentes)
e quando nos fitamos nos olhos,
bem lá no fundo dos olhos,
eu que sou homem nascido
para fazer as coisas mais heróicas da vida
viro a cabeça para o lado e digo:
— rapaz, traz-me um café...
O meu amigo, que era pintor,
contou-me numa noite de bebedeira:
— Olha,
quando chega domingo,
não há nada melhor que ir para o futebol...
E como os olhos se me enevoassem de água,
continuou com uma voz
que deve ser igual à que se ouve nos sonhos:
— .... no entanto, conheço um homem
que ia para a beira do rio
e passava um dia inteirinho de domingo
segurando uma cana donde caia um fio para a água...
... um dia pescou um peixe,
e nunca mais lá voltou...
O pior é pensar:
que hei-de fazer hoje, que toda a gente anda alegre
como se fosse uma festa?... —
O rapaz que era pintor sabia uma ciência rara,
tão rara e certa e maravilhosa
que deslumbrado se matou.

Pago o café e saio a grandes passadas.
Hoje e depois e todos os dias que vierem,
amo a vida mais e mais
que aqueles que sabem que vão morrer amanhã!

Mariazinha Santos,
que vá para o cinema morder o lencinho que sua mãe lhe bordou...
E os senhores serenos, acompanhados da mulher e dos filhos,
que parem ao sol
e joguem um tostão na mão dos pedintes...
E a menina das horas longas e frias
continue pela mão de sua avó...
E tu, que só andas com cavalheiros decentes,
ó costureirinha honesta que eu namorei um dia,
fita-me bem no fundo dos olhos,
fita-me bem no fundo dos olhos!

Então,
virá a miséria maior que todas
secar o último restolho de moral que em mim resta;
e eu ficarei rude como o deserto
e agreste como o recorte das altas serras:
e virá a ânsia do peito para os braços!

Domingo que vem,
eu vou fazer as coisas mais belas
que um homem pode fazer na vida!


Manuel da Fonseca


-Esteve:
Voz de Mário Viegas,

No Centenário de Almada Negreiros - Pode-se ouvir em http://tecum.multiply.com










PALMEIRA AGRESTE



novembro de 2005



Palmeira agreste, aveludado
perfume
de índias ocidentais. De que
falam as sombras
azuis, a lentidão
reconvertida, a súplice
inclinação das horas?


Albano Martins, Paralelo ao vento







um gato é um poema


7 de novembro de 2005




Um cão, eu sempre disse, é prosa;
Um gato é um poema.

Jean Burden, In Assinar a Pele







o mais belo presente de outono ***



tecum©


adesselinda



de noite escura
e raras madrugadas
faz-se a minha alma

de bruma e penumbra
quase sempre ocaso
derradeira luz sobre
um deserto de mares
imensos

assim eu sou

sempre ilha
jamais a almejada
península

pura inquietação
e a parca claridade



Márcia Maia

para T., com todo o meu amor.


*** meu beijo, emocionado, mudo, salgado, Márcia.







PELO FIM DA TARDE



Novembro de 2005





Era um dia, pelo fim da tarde,
o sol descia sobre
o sentimento da vida.


João Miguel Fernandes Jorge,
Tronos e Dominações pelo fim da Tarde







PENSAMENTO



Abril de 2005



Meu pensamento
partiu no vento
podem prendê-lo
matá-lo não
Meu pensamento
quebrou amarras
partiu no vento
deixou guitarras
meu pensamento
por onde passa
estátua de vento
em cada praça

[Refrão]

Foi à conquista
de um novo mundo
foi vagabundo
contrabandista
foi marinheiro
maltês ganhão
foi prisioneiro
mas servo não

[Refrão]

E os reis mandaram
fazer muralhas
tecer as malhas
de negras leis
homens morreram
chamas ao vento
por ti morreram
meu pensamento


Letra: Manuel Alegre
Música:A. Correia de Oliveira e A. Portugal


- Esteve:
Voz: Adriano Correia de Oliveira
Guitarra: António Portugal

Viola: Rui Pato - Pode ouvir-se em http://tecum.multiply.com







A terra... O mar...



2 de novembro de 2005




A terra é a minha passagem,
O mar o meu refúgio...


Maria do Céu Costa, Sentimentos no Silêncio








NA SOLIDÃO RENOVADA



2 de novembro de 2005



                        Com os dentes.
                        Sem música,
                        sem água.

                        Reptilmente.


                        António Ramos Rosa,
                       Nos Seus Olhos de Silêncio







Botella al mar



3 de outubro de 2005



Pongo estos seis versos en mi botella al mar
con el secreto designio de que algún día
llegue a una playa casi desierta
y un niño la encuentre y la destape
y en lugar de versos extraiga piedritas
y socorros y alertas y caracoles.


Mario Benedetti







OUTROS MASTROS



Agosto de 2005




moldo o teu rosto
entre os barcos:
imóvel percurso
do desassossego

a fogo e quartzo
revelo a memória
de outros mastros:
padrões
da viagem
inconcluída

repousa o mar
na orla
dos teus olhos
(vesperal
e frio)

ermo dos claustros
por ti erguidos
no meu painel
de tojo
arremesso à água
as grainhas

e vou perder-te
mais longe:
onde as nascentes
despertam


José Manuel Mendes, Limiar da terra