Um céu e nada mais



Teresa Rozatti



Um céu e nada mais - que só um temos,
como neste sistema: só um sol.
Mas luzes a fingir, dependuradas
em abóbada azul - como de tecto.
E o seu número tal, que deslumbrados
eram os teus olhos, se tas mostrasse,
amor, tão de ribalta azul, como de
circo, e dança então comigo no
trapézio, poema em alto risco,
e um levíssimo toque de mistério.
Pega nas lantejoulas a fingir
de sóis mal descobertos e lança
agora a âncora maior sobre o meu
coração. Que não te assuste o som
desse trovão que ainda agora ouviste,
era de deus a sua voz, ou mito,
era de um anjo por demais caído.
Mas, de verdade: natural fenómeno
a invadir-te as veias e o cérebro,
tão frágil como álcool, tão de
potente e liso como álcool
implodindo do céu e das estrelas,
imensas a fingir e penduradas
sobre abóbada azul. Se te mostrasse,
amor, a cor do pesadelo que por
aqui passou agora mesmo, um céu
e nada mais - que nada temos,
que não seja esta angústia de
mortais (e a maldição da rima,
já agora, a invadir poema em alto
risco), e a dança no trapézio
proibido, sem rede, deus, ou lei,
nem música de dança, nem sequer
inocência de criança, amor,
nem inocência. Um céu e nada mais.


Ana Luísa Amaral







Digamos pois...



Chagall



Digamos pois que a vida é um teatro,
em que cumpre ao actor fingir com arte:
levando-a a rir, como se fora farsa,
ou digno sendo na tragédia parte.


Paladas de Alexandria
in Poesia de 26 Séculos,
Tradução e notas de Jorge de Sena






Quand il allume son révèrbere,...






Quand il allume son réverbère,
c'est comme s'il faisait naître une étoile de plus, ou une fleur.

Antoine de Saint-Exupéry, Le Petit Prince




ao longe os barcos de flores
dias com árvores
prosema







Fado para um amor ausente



Mami



Meu amor disse que eu tinha
Uns olhos como gaivotas
E uma boca onde começa
O mar de todas as rotas

Assim falou meu amor
Assim falou ele um dia
E desde então fico à espera
Que seja como dizia

Sei que ele um dia virá
Assim muito de repente
Como se o mar e o vento
Nascessem dentro da gente


Letra: Manuel Alegre
Música: António Portugal







Árvores do Alentejo







Horas mortas...Curvada aos pés do Monte
A planície é um brasido... e, torturadas,
As árvores sangrentas, revoltadas,
Gritam a Deus a bênção duma fonte!

E quando, manhã alta, o sol posponte
A oiro a giesta, a arder, pelas estradas,
Esfíngicas, recortam desgrenhadas
Os trágicos perfis no horizonte!

Árvores! Corações, almas que choram,
Almas iguais à minha, almas que imploram
Em vão remédio para tanta mágoa!

Árvores! Não choreis! Olhai e vede:
- Também ando a gritar, morta de sede,
Pedindo a Deus a minha gota de água!


Florbela Espanca, Charneca em Flor








Famine



Saura



Dirty, filthy rags
Bones boring through
Large empty eyes
Fingers like knitting needles.
Craving for a morsel of food
Stomachs swollen
Empty ache.
Ireland 1847.
Ethiopia 1977 Somalia 1987
Russia, Peru, Auschwich, Japan
Biafra, Rawanda.
Hunger, poverty and starvation
Need no language of translation.
It's in the eyes, the feet, the hands
The sunken face of many lands.
Famine, sickness, death
And sorrow.


Anne Kelly



versos daqui




O exército soviético chegou ao campo [de concentração de Auschwitz] a 27 de Janeiro de 1945, libertando cerca de sete mil prisioneiros, sobretudo mulheres e crianças. Perante o avanço soviético, os nazis haviam morto muitos presos e obrigado 58 mil a abandonar o campo e andar durante dias à neve e ao frio. Mais de 15 mil morreram nessa "Marcha da Morte".










Ouve a luz






Ouve a luz
Como ainda tem o sabor das algas

Deixei-lhe escrito um recado
Das nuvens

Não te esqueças de ouvir a luz

Não te esqueças que ao sol pôr
Também eu morro

Não te esqueças


Daniel Faria, Poesia







Aqui na orla da praia, ...






Aqui na orla da praia, mudo e contente do mar,
Sem nada já que me atraia, nem nada que desejar,
Farei um sonho, terei meu dia, fecharei a vida,
E nunca terei agonia, pois dormirei de seguida.

A vida é como uma sombra que passa por sobre um rio
Ou como um passo na alfombra de um quarto que jaz vazio;
O amor é um sonho que chega para o pouco ser que se é;
A glória concede e nega; não tem verdades a fé.

Por isso na orla morena da praia calada e só,
Tenho a alma feita pequena, livre de mágoa e de dó;
Sonho sem quase já ser, perco sem nunca ter tido,
E comecei a morrer muito antes de ter vivido.

Dêem-me, onde aqui jazo, só uma brisa que passe,
Não quero nada do acaso, senão a brisa na face;
Dêem-me um vago amor de quanto nunca terei,
Não quero gozo nem dor, não quero vida nem lei.

Só, no silêncio cercado pelo som brusco do mar,
Quero dormir sossegado, sem nada que desejar,
Quero dormir na distância de um ser que nunca foi seu,
Tocado do ar sem fragrância da brisa de qualquer céu.


Fernando Pessoa, Cancioneiro







Táctica y Estrategia



Tàpies



Mi táctica es
mirarte
aprender cómo sos
quererte cómo sos

mi táctica es
hablarte
y escucharte
construir con palavras
un puente indestructible

mi táctica
es quedarte en tu recuerdo
no sé cómo nin sé
con que pretexto
pero quedarme en vos

mi táctica es
ser franco
y saber que sos franca
y que no nos vendamos
simulacros
para que entre los dos
no haya telón
ni abismos

mi estrategia es
más profunda y más
simple

mi estrategia es
que un dia cualquiera
ni sé cómo ni sé
con que pretexto
por fin me necesites.


Mario Benedetti



ouvir aqui ou aqui







em fundo





Wolfgang Amadeus Mozart
Klavierkonzerte nºs. 17&21
The Chamber Orchestra of Europe
Maria João Pires . Claudio Abbado



WAM








"A Capoeira"



Paula Rego




Imagem in

Ruth Rosengarten, Paula Rego e O Crime do Padre Amaro








Serralves
















Os silêncios da fala



Paula Rego



São tantos
os silêncios da fala

De sede
De saliva
De suor

Silêncios de silex
no corpo do silêncio

Silêncios de vento
de mar
e de torpor

De amor

Depois, há as jarras
com rosas de silêncio

Os gemidos
nas camas

As ancas
O sabor

O silêncio que posto
em cima do silêncio
usurpa do silêncio o seu magro labor.


Maria Teresa Horta, in Vozes e Olhares no Feminino








Dez chamamentos ao amigo



fractal


Se te pareço noturna e imperfeita
Olha-me de novo. Porque esta noite
Olhei-me a mim, como se tu me olhasses.
E era como se a água
Desejasse

Escapar de sua casa que é o rio
E deslizando apenas, nem tocar a margem.
Te olhei. E há tanto tempo
Entendo que sou terra. Há tanto tempo
Espero
Que o teu corpo de água mais fraterno
Se estenda sobre o meu. Pastor e nauta
Olha-me de novo. Com menos altivez.
E mais atento.


Hilda Hilst, poesias







Não canto porque sonho




imagem daqui



Não canto porque sonho.
Canto porque és real.
Canto o teu olhar maduro,
teu sorriso puro,
a tua graça animal.

Canto porque sou homem.
Se não cantasse seria
mesmo bicho sadio
embriagado na alegria
da tua vinha sem vinho.

Canto porque o amor apetece.
Porque o feno amadurece
nos teus braços deslumbrados.
Porque o meu corpo estremece
ao vê-los nus e suados


Letra: Eugénio de Andrade
Música: Fausto; A. P. Braga
In atrás dos tempos vêm tempos




Eugénio de Andrade nasceu em 19 de Janeiro de 1923,
em Póvoa de Atalaia, Fundão








A cidade é um chão de palavras pisadas



Vieira da Silva



A cidade é um chão de palavras pisadas
a palavra criança a palavra segredo.
A cidade é um céu de palavras paradas
a palavra distância e a palavra medo.

A cidade é um saco um pulmão que respira
pela palavra água pela palavra brisa
A cidade é um poro um corpo que transpira
pela palavra sangue pela palavra ira.

A cidade tem praças de palavras abertas
como estátuas mandadas apear.
A cidade tem ruas de palavras desertas
como jardins mandados arrancar.

A palavra sarcasmo é uma rosa rubra.
A palavra silêncio é uma rosa chá.
Não há céu de palavras que a cidade não cubra
não há rua de sons que a palavra não corra
à procura da sombra duma luz que não há.


José Carlos Ary dos Santos, In Sofrimento








Um mar rodeia o mundo de quem está só






Um mar rodeia o mundo de quem está só. É
o mar sem ondas do fim do mundo. A sua água
é negra; o seu horizonte não existe. Desenho
os contornos desse mar com um lápis de
névoa. Apago, sobre a sua superfície, todos
os pássaros. Vejo-os abrigarem-se da borracha
nas grutas do litoral: as aves assustadas da
solidão. «É um mundo impenetrável», diz
quem está só. Senta-se na margem, olhando
o seu caso. Nada mais triste para além dele, até
esse branco amanhecer que o obriga a lembrar-se
que está vivo. Então, espera que a maré suba,
nesse mar sem marés, para tomar uma decisão.


Nuno Júdice, Pedro, lembrando Inês








Mester d´amor



Amor e Psique. Fresco. Casa de Terêncio. Séc. I



Mester d´amor


Si en saps el pler no estalviïs el bes
que el goig d´amar no comporta mesura.
Deixa´t besar, i tu besa després
que és sempre als llavis que l´amor perdura.

No besis, no, com l´esclau i el creient,
mes com vianant a la font regalada;
deixa´t besar -sacrifici fervent-
com més roent més fidel la besada.

¿Què hauries fet si mories abans
sense altre fruit que l´oreig en ta galta?
Deixa´t besar, i en el pit, a les mans,
amant o amada -la copa ben alta.

Quan besis, beu, curi el veire el temor:
besa en el coll, la més bella contrada.
Deixa´t besar
i si et quedava enyor
besa de nou, que la vida és comptada.


Joan Salvat-Papasseit



A Gaspar Sabater agradeço a descoberta deste poeta catalão.



Ofício de amor


Se conheces o prazer, não escatimes o beijo
pois o prazer de amar não comporta medida.
Deixa-te beijar e beija tu depois,
que nos lábios sempre é onde o amor perdura.

Não beijes, não, como o escravo e o crente,
mas como o viandante à fonte oferecida.
Deixa-te beijar - ardente sacrifício -
quanto mais queima mais fiel é o beijo.

Que terias feito se tu morresses antes,
sem mais fruto do que a aragem no rosto?
Deixa-te beijar, e no peito, nas mãos
- amante ou amada - a taça muito alta.

Quando beijes, bebe, o copo sare o medo:
beija no pescoço, o sítio mais formoso.
Deixa-te beijar,
e se ainda te apetece
beija de novo, pois a vida é contada.


Joan Salvat-Papasseit - Trad.: José Bento







"oferta/sugestão naïf, para Texere"






Vem comigo, tecedeira,
Pára um pouco de tecer;
Há tantas flores no campo,
Que apetece i-las colher.

Júlio Dinis, Poesias



F., gratíssima pela gentil brincadeira.

... e assim reli "A tecedeira" de Júlio Dinis.
Escolhi para ti a quadra seguinte:


-"Teça, teça, condezinho,
Que outro tanto farei eu.
A ver quem faz melhor teia,
Se é o seu tear, se o meu."

Júlio Dinis, Poesias








em fundo



Foto: Wiora


Beethoven
Sonata for Violin and Piano Nº 9
in A major, op. 47, Kreutzer Sonata
Yehudi Menuhin - Violin
Wilhelm kempff - Piano





Ludwig van Beethoven


Leon Tolstoi, Sonata a Kreutzer








Leur cri






Il y a ceux qui crient ceux qui appellent
sans remuer les lèvres terrassés et debout
marchant terrassés et debout sur le trottoir illimité des villes
ceux qui crient au secours ceux dont la bouche s'est creusée
d'un trou sans fond d'où sort le cri
le cri éraillé le cri avec des fils de bave entre les lèvres
ceux qui vivent dans le tombeau vivant du cri
le cri et qui entend le cri

Les rues vomissent les autos les bruits et les images
sans comprendre
surtout sans ce désir jamais de comprendre
les portes se referment sur la fraîcheur des appartements
autour du plat que l'on partage à table dans le mutisme
et sur l'écran les satisfaits gesticulent privés du son de leur parole
avant d'assouvir le torrent de sottises dans le bruit de paroles
parler désormais dans ce monde
c'est imposer plus de bruit sans entendre sans écouter
seul avec l'horreur de soi et l'horreur dans la nuit

Pourtant on berce au fond de soi un oiseau de silence
on berce au fond de soi un chant sans syllabes
une lumière comme une lampe sans flamme une langue sans mots
un regard qui désire d'autres regards
on sait son visage inaccompli sans la présence d'autres visages
on sait on sait cela que l'on oublie : on le découvre
est-ce l'espoir alors quand on se dresse dans le vent et la fougue
l'espoir quand on entend au fond de soi germer les mots d'une parole
parole vraie confuse petite lumière
quand la main trouve sa voie vers d'autres mains devant
quand les yeux construisent dans le silence une beauté de regards


Philippe Delaveau, Une salve d'avenir. L'espoir, anthologie poétique








A passagem dos dias



De Chirico



Se, com o tempo, perco e encontro o que é
igual e diferente, perdendo o igual no que
é presente e vendo a diferença no passado
da presença, ao tempo dou o mesmo que

penso no que foi pensado sem viver,
vivendo agora o pensamento que não
tive, como vento que por aqui passou
e tudo na mesma deixou: árvore seca

cujo ramo vive, flor amarga num azul
de céu, ribeiro que a margem prende,
ave pousada num fio de silêncio. Assim,

ao tempo restituo o que é dele, e tudo
o que é dele o tempo me dá, igual e
diferente, com o seu fruto amplo e mudo


Nuno Júdice








Parabéns, amigo



Magritte


Grata

Beijo meu








Barco solto



Odilon Redon


Dançar na proa
Conquistar
O mastro


Daniel Faria, A Casa dos Ceifeiros







Só eu sei quanto dói a separação!



Israel Lifvak



Só eu sei quanto dói a separação!
Na minha nostalgia fico desterrado
À míngua de encontrar consolação.
À pena no papel escrever não é dado
Sem que a lágrima trace, caindo teimosa,
Linhas de amor na página da face.
Se o meu grande orgulho não obstasse
Iria ver-te à noite: orvalho apaixonado
De visita às pétalas da rosa.


Al-Mu'Tamid






Encontrou naquele janeiro trabalho




Raquel Martins



Encontrou naquele janeiro trabalho
nas obras.
O seu melhor era o abrir da lancheira
o termo de alumínio canelado protegendo

o espelhado vidro
o café mantinha-se quente por muitas
horas.
As botas de velhos atacadores já com

buracos
as grossas meias de algodão a camisola
rota num dos braços o fato-macaco
a negra barba mal feita e os tijolos

erguendo a lenta parede dos dias.
O reboco o triturar a pedra
o cimento quase parte das mãos
a poeira doendo os olhos.

Sem ninguém, entre fasquias andaimes e
caliça
sem espaço para legenda bebe café entre
o vigésimo terceiro e quarto andar.


João Miguel Fernandes Jorge, O Regresso dos Remadores








Quero-te para além das coisas justas



Edward Hopper


Quero-te para além das coisas justas
e dos dias cheios de grandezas.
A dor não tem significado quando ma roubam as árvores
as ágatas, as águas.
O meu sol vem de dentro do teu corpo,
a tua voz respira a minha voz.
De quem são os ídolos, as culpas, as vírgulas
dos beijos? Discuto esta noite
apenas o pudor de preferir-te
entre as coisas vivas.


Joaquim Pessoa, À Mesa do Amor








Não Te Amo



Almada Negreiros



Não te amo, quero-te: o amor vem d'alma.
E eu n 'alma – tenho a calma,
A calma – do jazigo.
Ai! não te amo, não.

Não te amo, quero-te: o amor é vida.
E a vida – nem sentida
A trago eu já comigo.
Ai, não te amo, não!

Ai! não te amo, não; e só te quero
De um querer bruto e fero
Que o sangue me devora,
Não chega ao coração.

Não te amo. És bela; e eu não te amo, ó bela.
Quem ama a aziaga estrela
Que lhe luz na má hora
Da sua perdição?

E quero-te, e não te amo, que é forçado,
De mau, feitiço azado
Este indigno furor.
Mas oh! não te amo, não.

E infame sou, porque te quero; e tanto
Que de mim tenho espanto,
De ti medo e terror...
Mas amar!... não te amo, não.


Almeida Garrett, Folhas Caídas







em fundo



Bach,
Concerto for Flute, Violin, Harpsichord, Strings and basso Continuo
in A minor, BWV 1044 "Triple Concerto"
The English Concert
Trevor Pinnock




J S B








Impressão digital







Os meus olhos são uns olhos.
E é com esses olhos uns
Que eu vejo no mundo escolhos
Onde outros com outros olhos,
Não vêem escolhos nenhuns.

Quem diz escolhos diz flores.
De tudo o mesmo se diz.
Onde uns vêem luto e dores
Uns outros descobrem cores
Do mais formoso matiz.

Nas ruas ou nas estradas
Onde passa tanta gente,
Uns vêem pedras pisadas,
Mas outros, gnomos e fadas
Num halo resplandecente.

Inútil seguir vizinhos,
Querer ser depois ou ser antes.
Cada um é seus caminhos.
Onde Sancho vê moinhos
D. Quixote vê gigantes.

Vê moinhos? São moinhos.
Vê gigantes? São gigantes.


António Gedeão, Poesias Completas








Ser poeta



William Mulready, the sonnet



Ser poeta é ser mais alto, é ser maior
Do que os homens! Morder como quem beija!
É ser mendigo e dar como quem seja
Rei do Reino de Aquém e além Dor!

É ter de mil desejos o esplendor
É não saber sequer que se deseja!
É ter cá dentro um astro que flaameja,
É ter garras e asas de condor!

É ter fome, é ter sede de Infinito!
Por elmo, as manhãs de oiro e de cetim...
É condensar o mundo num só grito!

E é amar-te, assim, perdidamente...
É seres alma, e sangue, e vida em mim
E dizê-lo cantando a toda a gente!


Florbela Espanca, Charneca em Flor








Os amantes sem dinheiro




Chagall


Tinham o rosto aberto a quem passava.
Tinham lendas e mitos
e frio no coração.
Tinham jardins onde a lua passeava
de mãos dadas com a água
e um anjo de pedra por irmão.

Tinham como toda a gente
o milagre de cada dia
escorrendo pelos telhados;
e olhos de oiro,
onde ardiam
os sonhos mais tresmalhados.

Tinham fome e sede como os bichos,
e silêncio
à roda dos seus passos.
Mas a cada gesto
que faziam
um pássaro nascia dos seus dedos
e deslumbrado penetrava nos espaços.


Eugénio de Andrade








QUIEN ME COMPRA UNA NARANJA




¿Quién me compra una naranja
para mi consolación?
Una naranja madura
en forma de corazón.

La sal del mar en los labios
¡ay de mí!
la sal del mar en las venas
y en los labios recogí.

Nadie me diera los suyos
para besar.
La blanda espiga de un beso
yo no la puedo segar.

Nadie pidiera mi sangre
para beber.
Yo mismo no sé si corre
o si deja de correr.

Como se pierden las barcas
¡ay de mí!
como se pierden las nubes
y las barcas, me perdí.

Y pues nadie me lo pide,
ya no tengo corazón.
¿Quién me compra una naranja
para mi consolación?


José Gorostiza







"No Pasaran"



São João da Caparica, Jan. 2005



Par les grillages de l’attente
Je laisse l’espoir à la mer
Egrener ses ombres mouvantes

Mon regard lèche la torsade
Du fer forgé envoluté
La brise arrondit sa chamade

Poète Rassemble le monde
Brode la dentelle des marées
Et calligraphie sur leur onde

L’annonciation démiurgique
Qui vibre au chant désespéré
Jailli de ta lèvre magique

Tisse et fais renaître le songe
Où être heureux nous voudra dire
Que nous chasserons le mensonge

Malgré la honte et les carnages
Le cœur léger sous la nuée
Nous survivrons en tes mirages

Qui offrent leur parfum de menthe
Sous la volute enamourée
Face à la mer qui invente


Jamel Eddine Bencheikh ,"No Pasaran"
In Une salve d'avenir. L'espoir, anthologie poétique








Lusitânia



Trafaria



Os que avançam de frente para o mar
E nele enterram como uma aguda faca
A proa negra dos seus barcos
Vivem de pouco pão e de luar.


Sophia de Mello Breyner Andresen, Mar Novo







... vai florir



Foto: Wiora


Com a vara calculei a distância entre os dias
A vara, pensei, vai florir
Posso incliná-la para uma criança a colher


Daniel Faria, Poesia