Domingo



novembro de 2005




Quando chega domingo,
faço tenção de todas as coisas mais belas
que um homem pode fazer na vida.

Há quem vá para o pé das águas
deitar-se na areia e não pensar...
E há os que vão para o campo
cheios de grandes sentimentos bucólicos
porque leram, de véspera, no boletim do jornal:
«bom tempo para amanhã»...
Mas uma maioria sai para as ruas pedindo,
pois nesse dia
aqueles que passeiam com a mulher e os filhos
são mais generosos.
Um rapaz que era pintor
não disse nada a ninguém
e escolheu o domingo para se matar.
Ainda hoje a família e os amigos
andam pensando porque seria.
Só não relacionam que se matou num domingo!
Mariazinha Santos
(aquela que um dia se quis entregar,
que era o que a família desejava,
para que o seu futuro ficasse resolvido),
Mariazinha Santos
quando chega domingo,
vai com uma amiga para o cinema.
Deixa que lhe apalpem as coxas
e abafa os suspiros mordendo um lencinho que sua mãe lhe bordou,
quando ela era ainda muito menina...
Para eu contar isto
é que conheço todas as horas que fazem um dia de domingo!
À hora negra das noites frias e longas
sei duma hora numa escada
onde uma velha põe sua neta
e vem sorrir aos homens que passam!
E a costureirinha mais honesta que eu namorei
vendeu a virgindade num domingo
— porque é o dia em que estão fechadas as casas de penhores!

Há mais amargura nisto
que em toda a História das Guerras.

Partindo deste princípio,
que os economistas desconhecem ou fingem desconhecer,
eu podia destruir esta civilização capitalista, que inventou o domingo.
E esta era uma das coisas mais belas
que um homem podia fazer na vida!

Então,
todas as raparigas amariam no tempo próprio
e tudo seria natural
sem mendigos nas ruas nem casas de penhores...

Penso isto, e vou a grandes passadas...
E um domingo parei numa praça
e pus-me a gritar o que sentia,
mas todos acharam estranhos os meus modos
e estranha a minha voz...
Mariazinha Santos foi para o cinema
e outras menearam as ancas
— ao sol
como num ritual consagrado a um deus! —
até chegar o homem bem-amado entre todos
com uma nota de cem na mão estendida...

Venha a miséria maior que todas
secar o último restolho de moral que em mim resta;
e eu fique rude como o deserto
e agreste como o recorte das altas serras;
venha a ânsia do peito para os braços!

E vou a grandes passadas
como um louco maior que a sua loucura...
O rapaz que era pintor
aconchegou-se sobre a linha férrea
para que a morte o desfigurasse
e o seu corpo anónimo fosse uma bandeira trágica
de revolta contra o mundo.
Mas como o rosto lhe estava intacto
vai a família ao necrotério e ficou aterrada!
Conheci-o numa noite de bebedeira
e acho tudo aquilo natural.
A costureirinha que eu namorei
deixava-se ir para as ruas escuras
sem nenhum receio.
Uma vez que chovia até entrámos numa escada.
Somente sequer um beijo trocámos...
E isto porque no momento próprio
olhava para mim com um propósito tão sereno
que eu, que dela só desejava o corpo bom feito,
me punha a observar o outro aspecto do seu rosto,
que era aquela serenidade
de pessoa que tem a vida cheia e inteira.
No entanto, ela nunca pôs obstáculo
que nesse instante as minhas mãos segurassem as suas.
Hoje encontramo-nos aí pelos cafés...
(ela está sempre com sujeitos decentes)
e quando nos fitamos nos olhos,
bem lá no fundo dos olhos,
eu que sou homem nascido
para fazer as coisas mais heróicas da vida
viro a cabeça para o lado e digo:
— rapaz, traz-me um café...
O meu amigo, que era pintor,
contou-me numa noite de bebedeira:
— Olha,
quando chega domingo,
não há nada melhor que ir para o futebol...
E como os olhos se me enevoassem de água,
continuou com uma voz
que deve ser igual à que se ouve nos sonhos:
— .... no entanto, conheço um homem
que ia para a beira do rio
e passava um dia inteirinho de domingo
segurando uma cana donde caia um fio para a água...
... um dia pescou um peixe,
e nunca mais lá voltou...
O pior é pensar:
que hei-de fazer hoje, que toda a gente anda alegre
como se fosse uma festa?... —
O rapaz que era pintor sabia uma ciência rara,
tão rara e certa e maravilhosa
que deslumbrado se matou.

Pago o café e saio a grandes passadas.
Hoje e depois e todos os dias que vierem,
amo a vida mais e mais
que aqueles que sabem que vão morrer amanhã!

Mariazinha Santos,
que vá para o cinema morder o lencinho que sua mãe lhe bordou...
E os senhores serenos, acompanhados da mulher e dos filhos,
que parem ao sol
e joguem um tostão na mão dos pedintes...
E a menina das horas longas e frias
continue pela mão de sua avó...
E tu, que só andas com cavalheiros decentes,
ó costureirinha honesta que eu namorei um dia,
fita-me bem no fundo dos olhos,
fita-me bem no fundo dos olhos!

Então,
virá a miséria maior que todas
secar o último restolho de moral que em mim resta;
e eu ficarei rude como o deserto
e agreste como o recorte das altas serras:
e virá a ânsia do peito para os braços!

Domingo que vem,
eu vou fazer as coisas mais belas
que um homem pode fazer na vida!


Manuel da Fonseca


-Esteve:
Voz de Mário Viegas,

No Centenário de Almada Negreiros - Pode-se ouvir em http://tecum.multiply.com






21 Comments:

Blogger wind said...

Bravoooooooooooooooooo! Fui surpreendida logo pela voz do Mário Viegas, que declamava como ninguém e de quem tanto gostava. O poema, uma maravilha. É incrível como num domingo se descrevem vidas. Bonito e extraordinário post! beijos*****

8:45 da manhã  
Anonymous Anónimo said...

Agradeço-lhe este momento, T. Precioso momento!

9:23 da manhã  
Blogger None said...

Fica-se com um nó na garganta...

T. posso fazer um pedido? É este: seria possível parar, apagar, os outros sons que abrem ao mesmo tempo? Ou alguém que saiba como se faz para que o som seja iniciado pelo leitor/visitante, poderia ensinar à T. como se faz? Sei que é possível, mas ignoro o código.
Ou ensinem-me a mim, que ouço uma confusão de sons e perco as primeiras palavras do Mário Viegas :)

10:44 da manhã  
Blogger hfm said...

Que momento tão perfeito acabo de passar aqui! Obrigada.

10:46 da manhã  
Anonymous Anónimo said...

Uma boa selecção, não conhecia este poema. Beijinhos.

4:28 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Um beijo, T.

6:12 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Che bella selezione di opere!
Buona domenica,bom domingo, t.:)
Bacio
Pietro

6:52 da tarde  
Blogger João Fialho said...

Apreciei.

É a minha 1ª vez por aqui e gostei.
O que significa "texere"?

Bom fim-de-semana para todos.
Saudações alentejanas.

9:25 da tarde  
Blogger agua_quente said...

É a minha primeira vez aqui e fiquei encantada com o bom gosto deste post em particular. A voz de Mário Viegas (que saudade!) e este extraordinário poema de Manuel da Fonseca. Um momento para guardar.
Beijos

10:31 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Não tenho explicação para a frustrante impossibilidade de comentar que acontece a alguns amigos.

Beijinho,Márcia. Passo à trancrição do seu último comentário:
«

Estou atônita, embevecida, encantada, perplexa! Nunca vi/li tão bem esmiuçado o domingo, diazinho que eu particularmente não gosto.

Só esqueceu de dizer que há os que, aos domingos, simplesmente trabalham, de plantão, coo eu quase a vida inteira, como Maria e Felipe nos dias atuais.

Beijo enorme, amiga. Obrigada por um presente tão belo,


Márcia

PS- ainda sem consegur comentar no blog. ;) »

10:34 da manhã  
Blogger None said...

T. Obrigada pela explicação: só o IE é disciplinado. Os outros browsers, Opera e Mozilla transformam o Texere numa torre de Babel.
Beijo

7:51 da tarde  
Blogger Loba said...

Eu s empre detestei domingos! Sempre. Mas neste momento o domingo ganha novo significado. Ele vem acompanhado da poesia e da música. E de repente vira outro domingo.
Lindo, minha miga. Demias.
Beijo grande

8:17 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Quase em surdina digo: obrigado pelo nosso Manuel da Fonseca, obrigado pelo comentário no meu blog. Muito levemente, um beijo

10:10 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Manuel da Fonseca, Mário Viegas, rapaz que pesca, Bugio no horizonte, reflexo do sol, águas do Tejo... Obrigado por este precioso quarto de hora do meu domingo. Muito, muito obrigado.Terríveis são os domingos!

T., permita que deixe

Poema que Aconteceu de Carlos Drummond de Andrade:

Nenhum desejo neste domingo
nenhum problema nesta vida
o mundo parou de repente
os homens ficaram calados
domingo sem fim nem começo.

A mão que escreve este poema
não sabe o que está escrevendo
mas é possível que se soubesse
nem ligasse.

Drummond

Obrigado.

9:44 da manhã  
Blogger Nina said...

Este poema é lindo..

Desculpa a minha ausencia por estas bandas...mas estou a passar um momento menos bom e nem visitar os blogs q gosto me tem apetecido :(

Beijinho e OBRG pelo teu carinho :)

11:36 da manhã  
Anonymous Anónimo said...

Me quede encantado con ese poema y tu blog.
Gracias.
Un bueno domingo :))

1:45 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Coincidência eu lendo esse poema hoje, que é domingo. Vou olhar para hoje de maneira diferente, com os olhos de Manuel da Fonseca. Um abraço, T.

1:56 da tarde  
Blogger Poesia Portuguesa said...

Mário Viegas e Manuel da Fonseca...

e estou aqui a seguir atentamente a voz inconfundível de Viegas. Quanta saudade!

Grata por esta partilha memorável!

Um abraço terno ;)

5:28 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

QUE BOM, VOLTAR A OUVIR ESTA VOZ!! - OBRIGADA!!, um beijo, IO.

9:34 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Manuel da Fonseca e Mário Viegas.

A vossa presença.

Quão privilegiada me senti, neste

domingo!

12:08 da manhã  
Blogger Unknown said...

And the last(?) but...
Pois minha amiga fiquei muito emocionada quando aqui cheguei. Um grande domingo e um Kissinho muito pequenino...

3:29 da manhã  

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