Poético 2006



Lisboa - Casa dos Bicos - 24-12-2005




Receita de Ano Novo


Para você ganhar um belíssimo Ano Novo
cor de arco-íris, ou da cor da sua paz,
Ano Novo sem comparação como todo o tempo já vivido
(mal vivido ou talvez sem sentido)
para você ganhar um ano
não apenas pintado de novo, remendado às carreiras,
mas novo nas sementinhas do vir-a-ser,
novo até no coração das coisas menos percebidas
(a começar pelo seu interior)
novo espontâneo, que de tão perfeito nem se nota,
mas com ele se come, se passeia,
se ama, se compreende, se trabalha,
você não precisa beber champanha
ou qualquer outra birita,
não precisa expedir nem receber mensagens
(planta recebe mensagens?
passa telegramas?).

Não precisa fazer lista de boas intenções
para arquivá-las na gaveta.
Não precisa chorar de arrependido
pelas besteiras consumadas
nem parvamente acreditar
que por decreto da esperança
a partir de janeiro as coisas mudem
e seja tudo claridade, recompensa,
justiça entre os homens e as nações,
liberdade com cheiro e gosto de pão matinal,
direitos respeitados, começando
pelo direito augusto de viver.

Para ganhar um ano-novo
que mereça este nome,
você, meu caro, tem de merecê-lo,
tem de fazê-lo de novo, eu sei que não é fácil,
mas tente, experimente, consciente.

É dentro de você que o Ano Novo
cochila e espera desde sempre.


Carlos Drummond de Andrade



Na vossa companhia, amigos queridos,
esta viagem de 2005 foi-me tão gratificante
que aqui estarei, no cais azulão,
logo no início do ano.

Em plenitude, é como vos desejo 2006.


Com amizade, meu beijo grande, grande.







solstício de inverno - uma meditação



21 de Dezembro de 2005







- Aqui houve:
Jules Massenet, Méditation from Thais
Anne-Sophie Mutter
Wiener Philarmoniker
James Levine-







DOCES FESTAS, AMIGOS



Dezembro de 2005




      Jesus bleibet meine Freunde,
      Meines Herzens Trost und Saft,
      Jesus wehret allem Leide,
      Er ist meines Lebens Kraft,
      Meiner Augen Lust und Sonne,
      Meiner Seele Schatz und Wonne,
      Darum lass ich Jesum nicht
      Aus dem Herzen und Gesicht.




            Jesus, joy of man's desiring,
            He my heart's supreme delight;
            Jesus lightens all my troubles
            Though His love's redeemig might.
            He my eyes' most precious pleasure,
            He my spirit's choicest treasure,
            Fast and firm within my heart;
            He and I will never part.




                  Jésus, que ma joie demeure,
                  Consolation et suc de mon coeur,
                  Jésus protège de toute souffrance,
                  Il est la force de ma vie,
                  La joie et le soleil de mes yeux.
                  Le trésor et les délices de mon âme;
                  Aussi aurai-je toujours Jésus
                  Présent dans mon coeur et dans ma pensée




- Aqui esteve:
J.S. Bach, Cantata BWV 147
Jesus bleibet meine Freunde
The Choir of New College, Oxford
Edward Higginbottom
-







Feliz Natal, meus amigos



Dezembro de 2005




        Ladainha dos Póstumos Natais



        Há-de vir um Natal e será o primeiro
        em que se veja à mesa o meu lugar vazio

        Há-de vir um Natal e será o primeiro
        em que hão-de me lembrar de modo menos nítido

        Há-de vir um Natal e será o primeiro
        em que só uma voz me evoque a sós consigo

        Há-de vir um Natal e será o primeiro
        em que não viva já ninguém meu conhecido

        Há-de vir um Natal e será o primeiro
        em que nem vivo esteja um verso deste livro

        Há-de vir um Natal e será o primeiro
        em que terei de novo o Nada a sós comigo

        Há-de vir um Natal e será o primeiro
        em que nem o Natal terá qualquer sentido

        Há-de vir um Natal e será o primeiro
        em que o Nada retome a cor do Infinito


        David Mourão Ferreira
        Um Monumento de Palavras - CD



-Aqui esteve
Voz: David Mourão-Ferreira-



Para ti, minha Mãe,


[chega] um Natal e será o primeiro
que nem o Natal terá qualquer sentido

Possas tu sentir o meu amor!







eu pescador



Dezembro de 2005




            Eu pescador que tantas vezes faço
            a mim mesmo a pergunta de Elsenor
            e quais águas que passam sei que passo
            sem saber a resposta. Eu pescador.


            Manuel Alegre, Senhora das Tempestades







De facto***



12 de Dezembro de 2005



          De facto
          não amamos como as flores
          totalmente simples na sua entrega


          Ana Hatherly



*** por razões distintas,

dois especiais beijos

para a M. e para o M.

(ai essa caixa de correio...)







Como está sereno o Céu



12 de Dezembro de 2005



                            Como está sereno o Céu,
                            como sobe mansamente
                            a Lua resplandecente,
                            e esclarece este jardim!


                            Marquesa de Alorna, Sonetos







Parabéns, Rui Pedro**



24 de Outubro de 2005




Esplendor da tarde;
deve haver um amarelo
também a florir!


Yosa Buson



** Beijinho.

Dia muito bom :=)
















Uma onda



Dezembro de 2005



                                    Uma onda
                                    que penso.
                                    Outra em que reparo.
                                    A mesma em que pensei
                                    e que retorna ao mar.


                                    Manuel Rui, A Onda







E a vida...



5 de Dezembro de 2005



E a vida... e o amor... Deixá-la ir, a vida!...


Antero de Quental, Sonetos







Veio de longe...



7 de Dezembro de 2005


Veio de longe, e mal chegou partiu para mais longe ainda


Eugénio de Andrade, Os Sulcos da Sede








8 de Dezembro: Florbela - Camille



la valse
Camille Claudel




      AMAR!


      Eu quero amar, amar perdidamente!
      Amar só por amar: Aqui... além...
      Mais Este e Aquele, o Outro e toda a gente...
      Amar! Amar! E não amar ninguém!

      Recordar? Esquecer? Indiferente!...
      Prender ou desprender? É mal? É bem?
      Quem disser que se pode amar alguém
      Durante a vida inteira é porque mente!

      Há uma Primavera em cada vida:
      É preciso cantá-la assim florida,
      Pois se Deus nos deu voz, foi pra cantar!

      E se um dia hei-de ser pó, cinza e nada
      Que seja a minha noite uma alvorada,
      Que me saiba perder... pra me encontrar...


      Florbela Espanca, Charneca em Flor



-Aqui houve::
Voz: Teresa Silva Carvalho
Guitarra: Raimundo Seixas
Viola: Carlos Manuel
e     
Voz: Eunice Muñoz
Música: Rui Guedes-








LE CANCRE



5 de Dezembro de 2005




Il dit non avec la tête
mais il dit oui avec le cœur
il dit oui à ce qu’il aime
il dit non au professeur
il est debout
on le questionne
et tous les problèmes sont posés
soudain le fou rire le prend
et il efface tout
les chiffres et les mots
les dates et les noms
les phrases et les pièges
et malgré les menaces du maître
sous les huées des enfants prodiges
avec des craies de toutes les couleurs
sur le tableau noir du malheur
il dessine le visage du bonheur.


Jacques Prévert, Paroles







MEU AMOR       MEU AMOR



5 de Dezembro de 2005



  Meu amor       meu amor
meu corpo em movimento
minha voz à procura
do seu próprio lamento.


Meu limão de amargura       meu punhal a crescer
  nós parámos o tempo       não sabemos morrer.
e nascemos       nascemos
do nosso entristecer.

  Meu amor       meu amor
meu pássaro cinzento,
a chorar a lonjura,
do nosso afastamento.

  Meu amor       meu amor
meu nó de sofrimento
minha mó de ternura
minha nau de tormento
este mar não tem cura       este céu não tem ar
nós parámos o vento       não sabemos nadar
e morremos       morremos
  devagar       devagar


José Carlos Ary dos Santos, Poesia Completa







Seis ou treze coisas que eu aprendi sozinho



2 de Dezembro de 2005


A quinze metros do arco-íris o sol é cheiroso.

Manoel de Barros



Com cem anos de escória uma lata aprende a rezar.
Com cem anos de escombros um sapo vira árvore e cresce por cima das pedras até dar leite.
Insetos levam mais de cem anos para uma folha sê-los.
Uma pedra de arroio leva mais de cem anos para ter murmúrios.
Em seixal de cor seca estrelas pousam despidas.
Mariposas que pousam em osso de porco preferem melhor as cores tortas.
Com menos de três meses mosquitos completam a sua eternidade.
Um ente enfermo de árvore, com menos de cem anos, perde o contorno das folhas.
Aranha com olho de estame no lodo se despedra.
Quando chove nos braços da formiga o horizonte diminui.
Os cardos que vivem nos pedrouços têm a mesma sintaxe que os escorpiões de areia.
A jia, quando chove, tinge de azul o seu coaxo.
Lagartos empernam as pedras de preferência no inverno.
O vôo do jaburu é mais encorpado do que o vôo das horas.
Besouro só entra em amavios se encontra a fêmea dele vagando por escórias...
A quinze metros do arco-íris o sol é cheiroso.
Caracóis não aplicam saliva em vidros; mas, nos brejos, se embutem até o latejo.
Nas brisas vem sempre um silêncio de garças.
Mais alto que o escuro é o rumor dos peixes.
Uma árvore bem gorjeada, com poucos segundos, passa a fazer parte dos pássaros que a gorjeiam.
Quando a rã de cor palha está para ter
ela espicha os olhinhos para Deus.
De cada vinte calangos, enlanguescidos por estrelas, quinze perdem o rumo das grotas.
Todas estas informações têm soberba desimportância científica
como andar de costas.


Manoel de Barros







CARTA DE OUTONO



Novembro de 2005




    Pensarás que não te escrevi antes porque o verão
    consome a energia da alma com um apetite solar; e
    porque as tempestades do crepúsculo incendiaram as
    palavras com o rápido fogo aéreo. No entanto, eu
    ouço aquelas aves que gastaram as asas na travessia
    do Espírito, cujos olhos viram o que havia de duvidoso
    nas traseiras do invisível, onde um deus culpado
    se esconde e se ouvem as vozes sem nexo dos
    anjos enlouquecidos. Essas aves deixaram de saber voar;
    agarram-se aos ramos dos arbustos e, ao fim da tarde,
    gritam em direcção às nuvens com os olhos secos e
    sem medo. Abri-lhes o peito: e encontrei as entranhas
    verdes como as folhas perenes do norte. Então,
    ouço-te bater por dentro de mim, embora estejas morto;
    e os teus dedos tenham perdido a força antiga que
    desafiava a sombra. Procuro uma entrada no átrio
    desabrigado da página; avanço entre sílabas e versos
    perdendo-me do silêncio na insistência dos passos.
    O passado é todo o dia de ontem; a vida coube-me
    neste bolso do infinito onde guardei os últimos cigarros;
    o teu amor gastou-se com um breve brilho de
    isqueiro. Saio sem desejo dos desertos de outubro
    e novembro, arrastando o outono com os pés, nas planícies
    provisórias de um esquecimento de estações.


    Nuno Júdice, in Poemas em Voz Alta
    Poemas ditos por Natália Luiza


-Esteve:
Voz: Natália Luiza-