Timidez




Catherine Bourdeau, une certaine timidité


Basta-me um pequeno gesto,
feito de longe e de leve,
para que venhas comigo
e eu para sempre te leve...
- mas só esse eu não farei.

Uma palavra caída
das montanhas dos instantes
desmancha todos os mares
e une as terras distantes...
- palavras que não direi.

Para que tu me adivinhes,
entre os ventos taciturnos,
apago meus pensamentos,
ponho vestidos noturnos,
- que amargamente inventei.

E, enquanto não me descobres,
os mundos vão navegando
nos ares certos do tempo
até não se sabe quando...
- e um dia me acabarei.

Cecília Meireles






mal-me-queres




Van Gogh, vase with daisies and anemones


Ó malmequer mentiroso
Quem te ensinou a mentir
Tu dizes quem me quer bem
Quem de mim anda a fugir

Desfolhei um malmequer
Num lindo jardim de Santarém
Malmequer, bem me quer
Muito longe está quem me quer bem

Coitado do malmequer
Sem fazer mal a ninguém
São todos a desfolhá-lo
Para ver quem lhe quer bem

Malmequer não é constante
Malmequer muito varia
Vinte folhas dizem morte
Treze dizem alegria

Cancioneiro



tenho dúvidas
estou apreensivo
dizes tu, dilectissimus amicus,
lá dessa infindável viagem errática

escreves muito, nada explicas

ofereço-te malmequeres,
desfolha-os
brinca!

muito-pouco-nada
nada-pouco-muito
bem-me-quer-mal-me-quer
mal-me-quer-bem-me-quer


a música está aqui








AMORES PROIBIDOS




Drei Eichen, Feuer



em memória de David Mourão-Ferreira


Onde está quem amamos quando amamos
outro corpo de fogo em movimento?
Pra que abismo corremos pra que enganos
quando as promessas são poeira ao vento?

De que matéria alheia mal tentamos
fugir quando a verdade mora dentro
de alguém a cujo céu nos entregamos
numa noite de sonho e de tormento?

Ainda somos humanos se traímos
por instinto um amor de tantos anos
e só àquele instante obedecemos?

Ainda somos humanos? Ou seremos
a febre que há no sangue quando vimos
de súbito morrer num corpo e vamos
em busca do inferno que merecemos?

Talvez por um momento então sejamos
sonâmbulos fantasmas do que fomos
reflectidos num espelho que não vemos

Ou talvez nesse corpo descubramos
a memória da alma que perdemos
pra sempre no momento em que transpomos
a fronteira dos gestos quotidianos
e ao sabor de um desejo destruímos
todas as intenções todos os planos,
em nome dos prazeres mais supremos
na noite em que deixamos de ser donos
do nosso próprio corpo e abandonamos
angústias e remorsos e partimos
em busca da manhã que não sabemos

Onde está quem amamos quando somos
mais do que humanos? Mais? Ou muito menos?


Fernando Pinto do Amaral, Pena Suspensa







A gralha negra em tempo de chuva




Brigitte Pelzer-Hilke, Krafftier Krähe - Licht und Dunkelheit


Lá no alto, num ramo firme
arqueia-se uma gralha toda molhada
arranjando e voltando a arranjar as penas à chuva.
Não espero qualquer milagre
nem nada

que venha lançar fogo à paisagem
no interior dos meus olhos, nem procuro
mais no tempo inconstante qualquer desígnio,
mas deixo as folhas manchadas cair conforme caem,
sem cerimónia ou maravilha.

Embora - admito-o - deseje
ocasionalmente alguma resposta
do céu mudo, não posso honestamente queixar-me:
uma certa luz pode ainda
surgir incandescente

da mesa da cozinha ou da cadeira
como se um fogo celestial tornasse
seu, de um instante para outro, os mais estranhos objectos,
assim consagrando um intervalo
de outro modo inconsequente

por nos dar grandeza e glória
ou até amor. De qualquer modo, caminho agora
atenta (por isso poderia acontecer
mesmo nesta paisagem triste e arruinada); descrente,
mas astuta, ignorante

de que um anjo se decida a resplandecer
repentinamente a meu lado. Apenas sei que uma gralha
ordenando as suas penas negras pode brilhar
de tal maneira que prenda a minha atenção, erga
as minhas pálpebras, e conceda

um breve repouso com medo
de uma neutralidade total. Com sorte,
viajando teimosamente por esta estação
de fadiga, acabarei
por juntar um conjunto

de coisas. Os milagres acontecem
se gostares de invocar aqueles espasmódicos
gestos de luminosos milagres. A espera recomeçou de novo,
a longa espera pelo anjo,
por essa rara, fortuita visita.


Sylvia Plath, Pela Água
ed. bilingue - trad.: Maria de Lourdes Guimarães







encontro




Miradouro do Monte Agudo


Lisboa.
Uma visão (outra).








em fundo


Ursula Tillmetz, Tristan & Isolde


Richard Wagner, Tristan und Isolde
Birgit Nilsson, Christa Ludwig, Wolfgang Windgassen
Karl Böhm
Bayreuther Festspiele 1966


Tristão e Isolda

As linhas paralelas que nós somos
passam, distantes dos terrenos bens.
Para elas não são nenhuns dos pomos
com que tu, irmão-homem, te entreténs...

Podem vir pois ameaçar, tentar
águas de fáceis lagos nossos remos...
Para nós dois apenas este Mar:
o Infinito aonde nos veremos.

David Mourão-Ferreira



Uma Leitura de Tristão e Isolda à Luz da Crítica Feminina
 Richard Wagner
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Verlaine - Camilo Pessanha



Il pleure dans mon coeur
Comme il pleut sur la ville.
Quelle est cette langueur
Qui pénètre mon coeur?

O bruit doux de la pluie
Par terre et sur les toits!
Pour un coeur qui s'ennuie,
O le chant de la pluie!

Il pleure sans raison
Dans ce coeur qui s'écoeure.
Quoi? Nulle trahison?
Ce deuil est sans raison.

C'est bien la pire peine
De ne savoir pourquoi
Sans amour et sans haine
Mon coeur a tant de peine!

Verlaine




Van Gogh, Japonaiserie, Bridge in the Rain (after Hiroshige)



Água morrente

Il pleure dans mon coeur
Comme il pleut sur la ville.
Verlaine


Meus olhos apagados,
Vede a água cair.
Das beiras dos telhados
Cair, sempre cair.

Das beiras dos telhados,
Cair, quase morrer...
Meus olhos apagados,
E cansados de ver.

Meus olhos, afogai-vos
Na vã tristeza ambiente.
Caí e derramai-vos
Como a água morrente.

Camilo Pessanha






El Infinito



Edward Hopper, hotel-room


De un tiempo a esta parte
el infinito
se ha encogido
peligrosamente.
Quién iba a suponer
que segundo a segundo
cada migaja
de su pan sin límites
iba así a despeñarse
como canto rodado
en el abismo.

Mário Benedetti






em fundo

Ferrat chante Aragon



o meu pôr do sol
no memorável dia
em que o chá
perdeu calor
e
Ferrat diz Aragon:
un jour, un jour
le malheur d'aimer
les poètes
c'est si peu dire que je t'aime
que serais-je sans toi
au bout de mon âge
heureux celui qui meurt d'aimer






Uma voz na pedra



Magritte, Le regard interieur


Não sei se respondo ou se pergunto
Sou uma voz que nasceu na penumbra do vazio.


Estou um pouco ébria e estou crescendo numa pedra.
Não tenho a sabedoria do mel ou a do vinho.
De súbito, ergo-me como uma torre de sombra fulgurante.
A minha tristeza é a da sede e a da chama.
Com esta pequena centelha quero incendiar o silêncio.
O que eu amo não sei. Amo. Amo em total abandono.
Sinto a minha boca dentro das árvores e de uma oculta nascente.
Indecisa e ardente, algo ainda não é flor em mim.
Não estou perdida, estou entre o vento e o olvido.
Quero conhecer a minha nudez e ser o azul da presença.
Não sou a destruição cega nem a esperança impossível.
Sou alguém que espera ser aberto por uma palavra.

António Ramos Rosa







FORUGH FARROKHZAD




Jacques Pontbriand



O VENTO LEVAR-NOS-Á


Na minha noite, infelizmente tão curta
o vento está prestes a encontrar-se com as folhas das árvores
na minha noite, tão breve, e plena de uma angústia devastadora
ouve
ouves o sussurro das sombras?
esta felicidade é-me desconhecida
estou habituada ao desespero

Ouves o sussurro das sombras?
ali, na noite, algo acontece
a lua é vermelha e ansiosa
e sobre este telhado
que a qualquer momento pode ruir
as nuvens, qual procissão de carpideiras
aguardam o nascimento da chuva.
um segundo
depois nada
atrás desta janela a noite treme
e a terra pára de girar
atrás desta janela
qualquer coisa desconhecida inquieta-se comigo e contigo

Tu, verde dos pés à cabeça
coloca as tuas mãos, essas memórias escaldantes,
nas minhas mãos amorosas
entrega os teus lábios ao toque
dos meus lábios amorosos
repletos do calor da vida
o vento levar-nos-á
o vento levar-nos-á.

Forugh Farrokzad - Versão de Vasco Gato




Erik Anestad



LE VENT NOUS EMPORTERA


Dans ma nuit, si brève, hélas
Le vent a rendez-vous avec les feuilles.
Ma nuit si brève est remplie de l'angoisse dévastatrice
Ecoute! Entends-tu le souffle des ténèbres?
De ce bonheur, je me sens étranger.
Au désespoir je suis accoutumée.
Ecoute! Entends-tu le souffle des ténèbres?
Là, dans la nuit, quelque chose se passe
La lune est rouge et angoissée.
Et accrochés à ce toit
Qui risque de s'effondrer à tout moment,
Les nuages, comme une foule de pleureuses,
Attendent l'accouchement de la pluie,
Un instant, et puis rien.
Derrière cette fenêtre,
C'est la nuit qui tremble
Et c'est la terre qui s'arrête de tourner.
Derrière cette fenêtre, un inconnu s'inquiète
pour moi et toi.
Toi, toute verdoyante,
Pose tes mains - ces souvenirs ardents -
Sur mes mains amoureuses
Et confie tes lèvres, repues de la chaleur de la vie,
Aux caresses de mes lèvres amoureuses
Le vent nous emportera!
Le vent nous emportera!


Forough Farrokhzad,
Poème extrait du film Le Vent nous emportera,
d'Abbas Kiarostami




Alexis Lesaffre



THE WIND WILL TAKE US


In my small night, ah
the wind has a date with the leaves of the trees
in my small night there is agony of destruction
listen
do you hear the darkness blowing?
I look upon this bliss as a stranger
I am addicted to my despair.


listen do you hear the darkness blowing?
something is passing in the night
the moon is restless and red
and over this rooftop
where crumbling is a constant fear
clouds, like a procession of mourners
seem to be waiting for the moment of rain.
a moment
and then nothing
night shudders beyond this window
and the earth winds to a halt
beyond this window
something unknown is watching you and me.


O green from head to foot
place your hands like a burning memory
in my loving hands
give your lips to the caresses
of my loving lips
like the warm perception of being
the wind will take us
the wind will take us.


Forough Farrokhzad - Translated by Ahmad Karimi Hakkak




Louise Merzeau



IL VENTO CI PORTERÀ VIA


Nella mia piccola notte il vento, e le foglie
si ritrovano.

Nella mia piccola notte la paura, è
distruzione.

Ascolta, senti il frusciar dell'oscurità?

Io guardo meravigliato, questa felicità Del
mio pessimismo, son dipendente.

Ascolta, senti il frusciar dell'oscurità?

Ora nella notte qualcosa sta passando, e la
luna rossa è in allarme.

Su questo letto, che ogni attimo teme il
crollo, le nuvole, come un popolo in lutto,
attendono il momento della pioggia.

Un momento e subito dopo... nulla più.

Dietro questa finestra la notte trema e la
terra arresta il suo girare.

Oltre la finestra, un estraneo si preoccupa
di me e di te.

Oh corpo rigoglioso...le tue mani come
doloroso ricordo, poggia tra le mie
innamorate.

E le tue labbra, come una sensazione calda
di vita, lasciale carezzare le mie labbra
innamorate.

Il vento ci porterà via.

di Forugh Farrokhzad - traduzione Babak Karimi




Forugh Farrokhzad
aqui , aqui , aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, ...




Cascina Valletta







em fundo


Tchaikovsky - Violin Concerto D major, op.35
David Oistrach,Violin. Igor Oistrach, Violin
Leipzig Gewandhaus Orchestra - Franz Konwitschny





odeio relações de plástico, afirmou categórico.
nada acrescentou sobre sentimentos plastificados.








Difícil é...



Colin Mackenzie, tears from the heart


Difícil é esperar
quando sabemos
nada haver a esperar.

O eco de uma lágrima não basta
para dar vento à sementeira.

Egito Gonçalves, O Fósforo na Palha







AMOR


Chagall, Lovers in the Lilacs


Não sei nunca se é isto exactamente
o que chamam amor - esta vontade
de imaginar assim a força que há-de
tornar-nos mais felizes de repente

ou infelizes, tanto faz; a ardente
promessa de um saber que nos invade
e nos deixa sem nome nem idade
à espera de uma imagem que nos mente

na certeza de tudo o que se entrega
à nossa alma com uma luz que cega
todas as circunstâncias, uma a uma,

até se transformar na fantasia
que rouba o dia à noite, a noite ao dia,
e vai morrer algures, desfeita em espuma.

Fernando Pinto do Amaral, Pena Suspensa







Como cresceram as brasas!




Como cresceram as brasas! Como queimam
o ar em que desenho
o vazio dos dedos!

Que mala de amianto possuir
para guardar o fogo
de iluminar as noites que virão?

Egito Gonçalves, O fósforo na Palha







Sonho


Turner, Claire de Lune


Penso que devo ter adormecido por algum tempo;
Pois quando acordei tinhas vindo e partido.
Apenas algumas flores permaneciam –
Flores que não podiam sequer dizer quem eram…
E uma fragrância vaga e suave no ar.

Esta noite tenho de sonhar um sonho mais longo
Para que as flores falem
E a sua fragrância estenda uma trémula ponte
Entre nós.

P.S. Rege - Trad.: Cecília Rego Pinheiro


Beethoven: Sonate Au Claire de Lune
Por exemplo,
aqui.







A dor da separação






Pousada numa âncora, uma gaivota pia.
De súbito, sem uma palavra, a âncora desliza.
Surpreendida, a gaivota levanta voo.
Em breve, a âncora empalidece na água, afundando-se.
E o que a gaivota sente torna-se um grito bravio, triste,
Perdido no vento.

Maruyama Kaoru – Trad.: José Alberto Oliveira
In Rosa Do Mundo, 2001 Poemas Para O Futuro







Nos teus dedos...





Nos teus dedos nasceram horizontes
e aves verdes vieram desvairadas
beber neles julgando serem fontes.

Eugénio de Andrade, As Mãos e os Frutos







CAMILLE CLAUDEL

L'Abandon








Súplica


Kirsten Hellmich, Gross Flehen


Agora que o silêncio é um mar sem ondas
E que nele posso navegar sem rumo,
Não respondas
Às urgentes perguntas
Que te fiz.
Deixa-me ser feliz
Assim.
Já tão longe de ti, como de mim.
Perde-se a vida, a desejá-la tanto.
Só soubemos sofrer, enquanto
O nosso amor
Durou.
Mas o tempo passou,
Há calmaria...
Não perturbes a paz que me foi dada.
Ouvir de novo a tua voz, seria
Matar a sede com água salgada.

Miguel Torga, Câmara Ardente







em dia de aniversário do Poeta


Na grande confusão
deste medo
deste não querer saber
na falta de coragem
ou na coragem de
me perder me afundar
perto de ti tão longe
tão nu
tão evidente
tão pobre como tu
Oh diz-me quem sou eu
quem és tu?

António Ramos Rosa







A João Rui de Sousa

Para um amigo tenho sempre um relógio
esquecido em qualquer fundo de algibeira.
Mas esse relógio não marca o tempo inútil.
São restos de tabaco e de ternura rápida.
É um arco íris de sombra, quente e trémulo.
É um copo de vinho com o meu sangue e o sol.

António Ramos Rosa, Não posso adiar o coração







em fundo


Semiradsky - Chopin

Chopin - Concerto for Piano and Orchestra
Krystian Zimerman - piano
Orchestra Amsterdam - Kyrill Kondraschin








Caminho sem pés e sem sonhos


Astrid Lüders, Wirbel


Caminho sem pés e sem sonhos
só com a respiração e a cadência
da muda passagem dos sopros
caminho como um remo que se afunda.

os redemoinhos sorvem as nuvens e os peixes
para que a elevação e a profundidade se conjuguem.
avanço sem jugo e ando longe

de caminhar sobre as águas do céu.


Daniel Faria, Explicação das Árvores e de Outros Animais







em fundo


Carl Orff - Carmina Burana
Gundula Janowitz - Gerhard Stolze - Dietrich Fischer-Dieskau
Chor und Orchester der Deutschen Oper Berlin
Eugen Jochum


O fortuna
velut Luna
statu variabilis,
semper crescis
aut decrescis;
vita detestabilis
nunc obdurat
et tunc curat
ludo mentis aciem,
egestatem,
potestatem
dissolvit ut glaciem.

Sors immanis
et inanis,
rota tu volubilis,
status malus,
vana salus
semper dissolubilis,
obumbrata
et velata
michi quoque niteris;
[...]



Carmina Burana também aqui







Ocorre-me tropeçar


Claudined, Désir Intemporel


Ocorre-me tropeçar em ti numa linha
que escrevi noutra idade - tão discreta
é a tua presença que ninguém
a não ser eu te poderá descobrir.
E sinto-me grato, como também o estou
ao gato do quintal ou às gaivotas
que esgravatam em tantos versos meus
à procura de sol fresco para alimento.
"É o seu peito, a sua boca", digo então,
e na penumbra do quarto por instantes
brilha de novo o corpo do desejo.

Eugénio de Andrade, O Sal da Língua







mudança de hábito


desistiu.

cortou os cabelos, encurtou
as saias, trocou a cor do
batom e o número do telefone
celular.

esqueceu promessas e juras
- mentiras antigas -
bem como a cor dos seus olhos e
o tom grave da sua voz

: dele.

tratou de, em paz, viver a vida:
a sua.

as cartas, entretanto, guardou
para o caso de arrependimento
futuro ou se viesse a pesar a solidão.


Márcia Maia


Márcia, não resisti! :-)








Símbolos? Estou farto de símbolos...
Mas dizem-me que tudo é símbolo.
Todos me dizem nada.
Quais símbolos? Sonhos. –
Que o sol seja um símbolo, está bem...
Que a lua seja um símbolo, está bem...
Que a terra seja um símbolo, está bem...
Mas quem repara no sol senão quando a chuva cessa,
E ele rompe as nuvens e aponta para trás das costas
Para o azul do céu?
Mas quem repara na lua senão para achar
Bela a luz que ela espalha, e não bem ela?
Mas quem repara na terra, que é o que pisa?
Chama terra aos campos, às árvores, aos montes.
Por uma diminuição instintiva,
Porque o mar também é terra...

Bem, vá, que tudo isso seja símbolo...
Mas que símbolo é, não o sol, não a lua, não a terra,
Mas neste poente precoce e azulando-se
O sol entre farrapos finos de nuvens,
Enquanto a lua é já vista, mística, no outro lado,
E o que fica da luz do dia
Doura a cabeça da costureira que pára vagamente à esquina
Onde demorava outrora com o namorado que a deixou?
Símbolos? Não quero símbolos...
Queria – pobre figura de miséria e desamparo! –
Que o namorado voltasse para o costureira.

Álvaro de Campos







Tudo que faço...


De Chirico, Nostalgia do Infinito


Tudo que faço ou medito
Fica sempre na metade.
Querendo, quero o infinito.
Fazendo, nada é verdade.

Que nojo de mim me fica
Ao olhar para o que faço!
Minha alma é lúcida e rica,
E eu sou um mar de sargaço –

Um mar onde bóiam lentos
Fragmentos de um mar de além...
Vontades ou pensamentos?
Não o sei e sei-o bem.

Pessoa, Cancioneiro







Águia


Nicolas Stael



As águias não deviam ser aves
mas corações aduncos e com asas;

se olhares à flor dos campos e das casas
sentes o peito maior do que a amplidão:

se alguma coisa nasceu para voar
foi o teu coração.

Carlos de Oliveira, Colheita Perdida







"esta esquisita prova me tentou"


Athouguia, Na Rota de Mares Subterrâneos


esta esquisita prova me tentou
de tecer um rumor em muros de água
ossos de terra calcinada
o jugo

culpado me castigo com engenho
e da voz desenhada o artifício
restos de pele antiga
no laço da armadilha

em silêncio me muro e me demoro
no cálculo de rotas inexactas

um duro arbítrio quer que me desprenda
dos cinco ou mais sentidos
vou ser livre na terra desnudada
vou dizer o que sei como quem mente.

António Franco Alexandre, A Pequena Face







Diz-me, silêncio...


Magritte, La méditation


Diz-me, silêncio, em ruídos permanentes
singelamente confusos primitivos -
que mão estender à voz que ouvida não
fala comigo ou com ninguém, silente:
Devo tocar como quem chama e pede?
Ou agarrar o que não fala ainda
senão por gestos quase imperceptíveis?
Esperarei perguntas sem resposta?
Responderei perguntas não faladas?
Diz-me, silêncio, em ruídos de que és feito,
como entender-te quando és corpo humano.

Jorge de Sena






MÃOS


Rodin, Les Mains


Côncavas de ter
Longas de desejo
Frescas de abandono
Consumidas de espanto
Inquietas de tocar e não prender.

Sophia de Mello Breyner Andresen, Coral


[beleza estonteante:
o bailado de dez

mãos faladoras]






Quero falar-te deste amor, ...


Munch, Cinzas


Quero falar-te deste amor, como de um vento
amordaçado na camisa; uma febre de verão
que o mercúrio não acha; um telhado esmagado
pela ideia da chuva. Quero dizer-te

que sobre ele pairaram sempre brumas e nevoeiros
e profecias de temporais maiores, como os que levam
para longe os corpos dos navios. Não há notícias

deste amor; apenas uma intriga, um recado sonâmbulo,
um temor que desmaia as pregas do vestido e um sortilégio
urdido nas paisagens suspensas de um mapa que aperto
na mão sem desdobrar. E há memórias

deste amor? A voz sem as palavras, um livro lido
às escuras, um bilhete cifrado deixado num hotel,
um velho calendário cheio de desencontros? Não,

não há memória deste amor.

Maria do Rosário Pedreira, O Canto do Vento nos Ciprestes








em fundo



Chavelas Vargas

- interpreta -

Pablo Neruda, Eduardo Falú, Nicolas Guillen

Facundo Cabral, Atahualpa Yupanqui



[hoje:

o império do vinil]







DOMINGO


(da minha janela)

Quando chega domingo,
faço tenção de todas as coisas mais belas
que um homem pode fazer na vida.

Há quem vá para o pé das águas
deitar-se na areia e não pensar...
E há os que vão para o campo
cheios de grandes sentimentos bucólicos
porque leram, de véspera, no boletim do jornal:
« Bom tempo para amanhã»...
Mas uma maioria sai para as ruas pedindo,
pois nesse dia
aqueles que passeiam com a mulher e os filhos
são mais generosos.
Um rapaz que era pintor
não disse nada a ninguém
e escolheu o domingo para se matar.
Ainda hoje a família e os amigos
andam pensando porque seria.
Só não relacionam que se matou num domingo!
Mariazinha Santos
(aquela que um dia se quis entregar,
que era o que a família desejava,
para que o seu futuro ficasse resolvido),
Mariazinha Santos
quando chega domingo,
vai com uma amiga para o cinema.
Deixa que lhe apalpem as coxas
e abafa os suspiros mordendo um lencinho que sua mãe lhe bordou,
quando ela era ainda muito menina...
Para eu contar isto
é que conheço todas as horas que fazem um dia de domingo!
À hora negra das noites frias e longas
sei duma hora numa escada
onde uma velha põe sua neta
e vem sorrir aos homens que passam!
E a costureirinha mais honesta que eu namorei
vendeu a virgindade num domingo
— porque é o dia em que estão fechadas as casas de penhores!

Há mais amargura nisto
que em toda a História das Guerras.

Partindo deste princípio.
que os economistas desconhecem ou fingem desconhecer,
eu podia destruir esta civilização capitalista, que inventou o domingo.
E esta era uma das coisas mais belas
que um homem podia fazer na vida!

Então,
todas as raparigas amariam no tempo próprio
e tudo seria natural
sem mendigos nas ruas nem casas de penhores...

Penso isto, e vou a grandes passadas...
E um domingo parei numa praça
e pus-me a gritar o que sentia,
mas todos acharam estranhos os meus modos
e estranha a minha voz...
Mariazinha Santos foi para o cinema
e outras menearam as ancas
— ao sol
como num ritual consagrado a um deus! —
até chegar o homem bem-amado entre todos
com uma nota de cem na mão estendida...

Venha a miséria maior que todas
secar o último restolho de moral que em mim resta;
e eu fique rude como o deserto
e agreste como o recorte das altas serras;
venha a ânsia do peito para os braços!

E vou a grandes passadas
como um louco maior que a sua loucura...
O rapaz que era pintor
aconchegou-se sobre a linha férrea
para que a morte o desfigurasse
e o seu corpo anónimo fosse uma bandeira trágica
de revolta contra o mundo.
Mas como o rosto lhe estava intacto
vai a família ao necrotério e ficou aterrada!
Conheci-o numa noite de bebedeira
e acho tudo aquilo natural.
A costureirinha que eu namorei
deixava-se ir para as ruas escuras
sem nenhum receio.
Uma vez que chovia até entrámos numa escada.
Somente sequer um beijo trocámos...
E isto porque no momento próprio
olhava para mim com um propósito tão sereno
que eu, que dela só desejava o corpo bom feito,
me punha a observar o outro aspecto do seu rosto,
que era aquela serenidade
de pessoa que tem a vida cheia e inteira.
No entanto, ela nunca pôs obstáculo
que nesse instante as minhas mãos segurassem as suas.
Hoje encontramo-nos aí pelos cafés...
(ela está sempre com sujeitos decentes)
e quando nos fitamos nos olhos,
bem lá no fundo dos olhos,
eu que sou homem nascido
para fazer as coisas mais heróicas da vida
viro a cabeça para o lado e digo:
— rapaz, traz-me um café...
O meu amigo, que era pintor,
contou-me numa noite de bebedeira:
— Olha,
quando chega domingo,
não há nada melhor que ir para o futebol...
E como os olhos se me enevoassem de água,
continuou com uma voz
que deve ser igual à que se ouve nos sonhos:
— .... no entanto, conheço um homem
que ia para a beira do rio
e passava um dia inteirinho de domingo
segurando uma cana donde caia um fio para a água...
... um dia pescou um peixe,
e nunca mais lá voltou...
O pior é pensar:
que hei-de fazer hoje, que toda a gente anda alegre
como se fosse uma festa?... —
O rapaz que era pintor sabia uma ciência rara,
tão rara e certa e maravilhosa
que deslumbrado se matou.

Pago o café e saio a grandes passadas.
Hoje e depois e todos os dias que vierem,
amo a vida mais e mais
que aqueles que sabem que vão morrer amanhã!

Mariazinha Santos,
que vá para o cinema morder o lencinho que sua mãe lhe bordou...
E os senhores serenos, acompanhados da mulher e dos filhos,
que parem ao sol
e joguem um tostão na mão dos pedintes...
E a menina das horas longas e frias
continue pela mão de sua avó...
E tu, que só andas com cavalheiros decentes,
ó costureirinha honesta que eu namorei um dia,
fita-me bem no fundo dos olhos,
fita-me bem no fundo dos olhos!

Então,
virá a miséria maior que todas
secar o último restolho de moral que em mim resta;
e eu ficarei rude como o deserto
e agreste como o recorte das altas serras:
e virá a ânsia do peito para os braços!

Domingo que vem,
eu vou fazer as coisas mais belas
que um homem pode fazer na vida!

Manuel da Fonseca


[acordar cedo
ir à janela, olhar Lisboa, que ainda preguiça,
ver as pombas, as nuvens
sentir o súbito desejo de ouvir poesia
limpar o velho 33 rpm, e, dos estalidos, a força
da amada voz de Mário Viegas
diz Manuel da Fonseca.
F., lá longe, talvez cansado de tantas emoções
provocadas pela fascinante viagem,
escreve, lacónico, "adoentado!".
Dilectus amicus, como fico preocupada!


em 106.2, ouço
as time goes by

Domingo que vem,
eu vou fazer as coisas mais belas
que uma mulher pode fazer na vida!
]









cartas de amor



Irina Kalentieva, Girl near the window


Todas as cartas de amor são
Ridículas.
Não seriam cartas de amor se não fossem
Ridículas.

Também escrevi em meu tempo cartas de amor,
Como as outras,
Ridículas.
As cartas de amor, se há amor,
Têm de ser
Ridículas.

Mas, afinal,
Só as criaturas que nunca escreveram
Cartas de amor
É que são
Ridículas.

Quem me dera no tempo em que escrevia
Sem dar por isso
Cartas de amor
Ridículas.

A verdade é que hoje
As minhas memórias
Dessas cartas de amor
É que são
Ridículas.

(Todas as palavras esdrúxulas,
Como os sentimentos esdrúxulos,
São naturalmente
Ridículas.)

Álvaro de Campos, Poemas


[pessoas - sentimentos - tempos de antanho

a ansiedade pela chegada do carteiro,
o cerimonial da entrega ao outro
pela palavra escrita,
o diálogo real.

... saudosismo?
traição da memória?]







Brel - Lennon


Van Gogh, Vase with Gladioli


On n'oublie rien...

On n'oublie rien de rien
On n'oublie rien du tout
On n'oublie rien de rien
On s'habitue c'est tout

Ni ces départs ni ces navires
Ni ces voyages qui nous chavirent
De paysages en paysages
Et de visages en visages
Ni tous ces ports ni tous ces bars
Ni tous ces attrape-cafard
Où l'on attend le matin gris
Au cinéma de son whisky

Ni tout cela ni rien au monde
Ne sait pas nous faire oublier
Ne peut pas nous faire oublier
Qu'aussi vrai que la terre est ronde
On n'oublie rien de rien
On n'oublie rien du tout
On n'oublie rien de rien
On s'habitue c'est tout

Ni ces jamais ni ces toujours
Ni ces je t'aime ni ces amours
Que l'on poursuit à travers cœurs
De gris en gris de pleurs en pleurs
Ni ces bras blancs d'une seule nuit
Collier de femme pour notre ennui
Que l'on dénoue au petit jour
Par des promesses de retour

Ni tout cela ni rien au monde
Ne sait pas nous faire oublier
Ne peut pas nous faire oublier
Qu'aussi vrai que la terre est ronde
On n'oublie rien de rien
On n'oublie rien du tout
On n'oublie rien de rien
On s'habitue c'est tout

Ni même ce temps où j'aurais fait
Mille chansons de mes regrets
Ni même ce temps où mes souvenirs
Prendront mes rides pour un sourire
Ni ce grand lit où mes remords
Ont rendez-vous avec la mort
Ni ce grand lit que je souhaite
A certains jours comme une fête

Ni tout cela ni rien au monde
Ne sait pas nous faire oublier
Ne peut pas nous faire oublier
Qu'aussi vrai que la terre est ronde
On n'oublie rien de rien
On n'oublie rien du tout
On n'oublie rien de rien
On s'habitue c'est tout

Jacques Brel




Van Gogh, Vase wih peonies


Imagine

Imagine there's no Heaven
It's easy if you try
No hell below us
Above us only sky
Imagine all the people
Living for today

Imagine there's no countries
It isn't hard to do
Nothing to kill or die for
And no religion too
Imagine all the people
Living life in peace

You may say that I'm a dreamer
But I'm not the only one
I hope someday you'll join us
And the world will be as one

Imagine no possessions
I wonder if you can
No need for greed or hunger
A brotherhood of man
Imagine all the people
Sharing all the world

You may say that I'm a dreamer
But I'm not the only one
I hope someday you'll join us
And the world will live as one

John Lennon


[Lennon nasceu a 9 de Outubro de 1940
a 9 de Outubro de 1978 morreu Brel]








em fundo


Maria João Pires, Le Voyage Magnifique, Schubert




[Ouço Schubert, penso em ti, F., dilectissimus amicus,
lamento não me ter sido possível a despedida ao vivo.
Que a tua viagem seja igualmente magnífica.
Dois grandes beijos.
Toda a felicidade do mundo (e arredores :-).]






O NOME




Teu nome amarfanhado jaz num poço
a um salto mortal do esquecimento
teu nome renegado que eu não ouço
teu nome feito raiva e desalento

Teu nome que eu roí até ao osso
do ódio da ternura e do tormento
é agora o sinal de que não posso
castigar mais o próprio sofrimento.

Teu nome a cama estreita onde me deito
o abismo de sons onde recordo
um silêncio impossível e perfeito.

Teu nome que só lembro quando mordo
um nome de milhões de nomes feito
que só é nomeado quando acordo.

José Carlos Ary dos Santos, Obra Poética






C'est le temps que tu as perdu...


C'est le temps que tu as perdu pour ta rose qui fait ta rose si importante.

Antoine de Saint-Exupéry, Le Petit Prince




AGRESTE
ALFABETO
LENDO E SONHANDO
LOBA
MUDANÇA DE VENTOS
NUNCA PLANTÁVAMOS COENTRO
TÁBUA DE MARÉS
SEGREDOS DE DEMÉTER
UMBIGO DO SONHO
ZUMBI ESCUTANDO BLUES







Sunlight in a Cafetaria


Edward Hopper, Sunlight in a Cafetaria


Abria o guarda-fatos e tirava
o casaco mais velho e as piores
calças de veludo cor de sombra
Ia ter contigo. Só o perfume

fazia pressentir o coração,
essa frágil ideia que batia
quando me sentava no café
muito antes da hora combinada.

As mãos quietas, o rosto debruçado
para o vidro sujo de tabacos
donde ao longe havias de chegar.

O chão coberto duma luz magoada,
de papéis amassados, cinzas
que teus pés vinham a calcar.

Joaquim Manuel Magalhães, Uma Exposição






ontem,

o meu pôr do sol



[olham-se fotografias
destroem-se emails
apagam-se sms

de ocasos
se tecem os dias]





NO RECHACES LOS SUEÑOS POR SER SUEÑOS...


Salvador Dali, Sueño causado por el vuelo de una abeja
alrededor de una granada un segundo antes del despertar



No rechaces los sueños por ser sueños.
Todos los sueños pueden
ser realidad, si el sueño no se acaba.
La realidad es un sueño. Si soñamos
que la piedra es la piedra, eso es la piedra.
Lo que corre en los ríos no es un agua,
es un soñar, el agua, cristalino.
La realidad disfraza
su propio sueño, y dice:
«Yo soy el sol, los cielos, el amor.»
Pero nunca se va, nunca se pasa,
si fingimos creer que es más que un sueño.
Y vivimos soñándola. Soñar
es el modo que el alma
tiene para que nunca se le escape
lo que se escaparía si dejamos
de soñar que es verdad lo que no existe.
Sólo muere
un amor que ha dejado de soñarse
hecho materia y que se busca en tierra.


Pedro Salinas






Sou de vidro






Meus amigos sou de vidro
Sou de vidro escurecido
Encubro a luz que me habita
Não por ser feia ou bonita
Mas por ter assim nascido
Sou de vidro escurecido
Mas por ter assim nascido
Não me atinjam não me toquem
Meus amigos sou de vidro

Sou de vidro escurecido
Tenho fumo por vestido
E um cinto de escuridão
Mas trago a transparência
Envolvida no que digo
Meus amigos sou de vidro
Por isso não me maltratem
Não me quebrem não me partam
Sou de vidro escurecido

Tenho fumo por vestido
Mas por assim ter nascido
Não por ser feia ou bonita
Envolvida no que digo
Encubro a luz que me habita

Lídia Jorge





em fundo


Claudined, silence dans l'azur

Ottorino Respighi, Italiana, from Ancient Airs and Dances for Lute
Berliner Philharmoniker - Herbert von Karajan


[crê: infinitamente grata, disse ela
ele, no turbilhão lento de sensações desencontradas, fez a opção
- o inaudível grito -
agradecer,
agradecer sempre

as paralelas encontram-se no infinito]







Estátua


Barbara Rainer Nothdurf, Faszination Eis


Cansei-me de tentar o teu segredo:
No teu olhar sem cor, - frio escalpelo,
O meu olhar quebrei, a debatê-lo,
Como a onda na crista dum rochedo.

Segredo dessa alma e meu degredo
E minha obsessão! Para bebê-lo
Fui teu lábio oscular, num pesadelo,
Por noites de pavor, cheio de medo.

E o meu ósculo ardente, alucinado,
Esfriou sobre o mármore correcto
Desse entreaberto lábio gelado…

Desse lábio de mármore, discreto,
Severo como um túmulo fechado,
Sereno como um pélogo quieto.

Camilo Pessanha, Clepsidra