Em Sintra



Monserrate - Sintra



As águas maravilham-se entre os lábios
e a fala, rápidos
em Sintra espelhos surgem como pássaros,
a luz de que se erguem acontece às águas,
à flor da fala
divide os lábios e a ternura. Da linguagem
rebentam folhas duma cor incómoda, as de que
maravilhado de água surges entre
livros, algum crime, um
menino a dissolver-se ou dele os lábios e ergues
equívoca a luz depois. Rápidos
espelhos então cercam-te explodindo os pássaros.


Luís Miguel Nava, Poesia Completa







Sintra


... um jardim terreal que Salomão mandou aqui
a um rei de Portugal

Gil Vicente





em fundo


Resnichenko, violin

Johannes Brahms, Violin Concerto, op. 77



BRAHMS

O som do violino
escapa
por entre as lisuras
As fissuras incandescentes da tarde

Buscando no corpo a eleição
a perfeição
Os jacintos adormecidos da arte

Numa desordem
súbita


Maria Teresa Horta, Destino



Brahms também aqui, aqui






AMIZADE






De mais ninguém, senão de ti, preciso:
Do teu sereno olhar, do teu sorriso,
Da tua mão pousada no meu ombro.
Ouvir-te murmurar: - "Espera e confia!"
E sentir converter-se em harmonia,
O que era, dantes, confusão e assombro.


Carlos Queirós
in 366 poemas que falam de amor,
uma antologia organizada por
Vasco Graça Moura


domingo
tarde cinzenta,
na memória, dia único
de mar, de sol
nos ouvidos, Bruckner
na alma, poesia,
poesia, poesia







On n'a pas besoin de la lune





On n'a pas besoin de la lune
Quand on est vraiment amoureux
Pas besoin de vent sur la dune
Ni de source ni de ciel bleu
Du moment qu'on aime sa brune
Ça suffit pour qu'on soit heureux
Les yeux dans les yeux
Et le coeur joyeux
On oublie la terre et les cieux

Quelle bonheur quelle joie quelle chance
Ma donnée la vie
La première fois que je vis
Celle qui est mon amie
Nous avons fait connaissance
Son jardin fleuri
Et pas sous le ciel de la Provence
Mais sous un parapluie Place Clichy

Un petit coin de parapluie
Contre un coin de paradis
Elle avait quelque chose d'un ange

On n'a pas besoin de la lune
Quand on est vraiment amoureux
Pas besoin de vent sur la dune
Ni de source ni de ciel bleu
Du moment qu'on aime sa brune
Ça suffit pour qu'on soit heureux
Les yeux dans les yeux
Et le coeur joyeux
On oublie la terre et les cieux

On n'a pas besoin de la lune
Quand on est vraiment amoureux


Georges Brassens, chansons de sa jeunesse







La blanche Séléné...



Edward J. Poynter, Vision of Endymion



- La blanche Séléné laisse flotter son voile,
Craintive, sur les pieds du bel Endymion,
Et lui jette un baiser dans un pâle rayon...

Arthur Rimbaud, Soleil et chair







Endymion



David Perret, endymion


Por ti lutavam deuses desumanos.
E eu vi-te numa praia abandonado
À luz, e pelos ventos destroçado,
E os teus membros rolaram nos oceanos.


Sophia de Mello Breyner Andresen







ENDIMIÃO, ENDIMIÃO





Endimião, Endimião,
porque existes só para seres sombra
do desejo mais forte.
Apelas para o elo
que a boca bem redonda continua.
O beijo, sede de água
luminosa soando a pedra fresca
escorrida pelo rio.
Só faltam assim as mãos.
A empatia.
(O senso mais medido.)
Endimião, não quero teu busto
ao canto da casa que me ergo,
não quero a cegueira empedernida.
És, ouve bem,
a pura forma de encontrar a via,
o sono,
o canto na lonjura.
A imobilidade rasa da
resignação.
Amar-te o silêncio
é entregar-me em abismo à natureza.


Maria Alzira Seixo
in 366 poemas que falam de amor
antologia organizada por
Vasco Graça Moura






Hino ao sol





Respiro o doce hálito da tua boca
- diz Akhenaton ao divino Sol. -
Vejo a tua beleza
todos os dias,
quero para sempre ouvir tua doce voz,
como o vento.
Desejo que a vida renasça em mim,
graças ao teu amor.
Dá-me o alento
que rejuvenesce o teu espírito,
para que eu o colha,
o receba
e dele viva.
Chama por mim até à eternidade.
Jamais deixarei de estar contigo,
jamais deixarei de te responder.

Akhenaton (Amenófis IV)






Asas






Eu tenho asas!
Piso o chão como pisa toda a gente
mas tenho asas
de impalpável tecido transparente,
feitas de pó de estrelas e de flores.
Asas que ninguém vê, que ninguém sente,
asas de todas as cores.
Pequenas asas brancas que me afastam
das coisas triviais
e as tornam leves, fluídas, irreais
- polén, nuvem, luar, constelações,
irisados cristais.
Asa branca minha alma a palpitar,
bater de asas o doce ciciar
de pálpebras e cílios.
Ó minhas asas brancas de cetim!
Revoadas de pássaros meus sonhos,
Meus desejos sem fim!

Fernanda de Castro, Exílio







Les gens ont...



foto: Wiora

Les gens ont des étoiles qui ne sont pas les mêmes.

Antoine de Saint-Exupéry, Le Petit Prince




Eelko Van Mulder
Letras ao acaso
Novos voos
O verso dos versos
Oceanus occidentalis






Sozinha no bosque



Dante Gabriel Rossetti, Portrait of Elizabeth Siddal


Sozinha no bosque
Com meus pensamentos,
Calei as saudades
Fiz tréguas a tormentos.

Olhei para a Lua,
Que as sombras rasgava,
Nas trémulas águas
Seus raios soltava.

N'aquela torrente
Que vai despedida,
Encontro assustada
A imagem da vida.

Do peito em que as dores
Já iam cessar,
Revoa a tristeza
E torno a penar.


Marquesa de Alorna, Obras Poéticas






em fundo


Gustav Klimt, Franz Schubert


Franz Schubert, Ave Maria


Ave Maria
Gratia plena
Maria, gratia plena
Maria, gratia plena
Ave, ave dominus
Dominus tecum
Benedicta tu in mulieribus
Et benedictus
Et benedictus fructus ventris
Ventris tui, Jesus.
Ave Maria
Ave Maria
Mater Dei
Ora pro nobis peccatoribus
Ora pro nobis
Ora, ora pro nobis peccatoribus
Nunc et in hora mortis
Et in hora mortis nostrae
Et in hora mortis nostrae
Et in hora mortis nostrae
Ave Maria


F., dilectissimus, (tão longínquo, tão longínquo), hoje, em dia de aniversário da morte de Schubert, que sei amares, proponho-te estas diferentes interpretações. As possíveis, dado o meu desconhecimento de como se coloca música no blogue.
aqui, aqui, aqui, aqui, ...






Se tu viesses ver-me ...



Hopper


Se tu viesses ver-me hoje à tardinha,
A essa hora dos mágicos cansaços,
Quando a noite de manso se avizinha,
E me prendesses toda nos teus braços...

Quando me lembra: esse sabor que tinha
A tua boca... e eco dos teus passos...
O teu riso de fonte... os teus abraços...
Os teus beijos... a tua mão na minha...

Se tu viesses quando, linda e louca,
Traça as linhas dulcíssimas dum beijo
E é de seda vermelha e canta e ri

E é como um cravo ao sol a minha boca...
Quando os olhos se me cerram de desejo...
E os meus braços se estendem para ti...


Florbela Espanca, In Charneca em Flor









Como te amo? - How do I love thee?


Como te amo? Deixa-me contar os modos.
Amo-te ao mais fundo, amplo e alto
Minh'alma pode alcançar, além dos limites visíveis
E fins do Ser e da Graça ideal.

Amo-te até ao nível das mais diárias
E ínfimas necessidades, à luz do sol e das velas.
Amo-te com liberdade, como os homens buscam por Justiça;
Amo-te com pureza, como voltam das Preces.

Amo-te com a paixão posta em uso
Nas minhas velhas mágoas e com a fé da minha infância.
Amo-te com um amor que me parecia perdido

Com meus Santos perdidos - amo-te com o fôlego,
Sorrisos, lágrimas, de toda a minha vida! - e, se Deus quiser,
Amar-te-ei melhor depois da morte.


Elizabeth Barrett Browning
Sonetos dos Portugueses, trad.:Luís Eusébio




Chagall, Land Gods II - Cupid and Psyche



How do I love thee? Let me count the ways.
I love thee to the depth and breadth and height
My soul can reach, when feeling out of sight
For the ends of Being and ideal Grace.

I love thee to the level of everyday's
Most quiet need, by sun and candlelight.
I love thee freely, as men strive for Right;
I love thee purely, as they turn from Praise.

I love thee with the passion put to use
In my old griefs, and with my childhood's faith.
I love thee with a love I seemed to lose

With my lost saints, - I love thee with the breath,
Smiles, tears, of all my life! - and, if God choose,
I shall but love thee better after death.


Elizabeth Barrett Browning
Sonnets from the Portuguese







Enleio



Maxfield Parrish, ecstasy


Não sei se volteio
Se rodopio
Se quebro

Se tombo nesta queda
em que passeio

Não sei se a vertigem
em que me afundo
é este precipício em que me enleio

Não sei se cair assim
me quebra...
Me esmago ou sobrevivo
em busca deste anseio


Maria Teresa Horta, Destino






em fundo


Bouguereau, the first kiss


Donizetti, l'elisir d'amore

Rescigno, Pavarotti, Blegen

Metropolitan Opera

una furtiva lacrima aqui


Una furtiva lagrima
negli occhi suoi spuntò...
quelle festose giovani
invidiar sembrò...
Che più cercando io vo?
M'ama, lo vedo.
Un solo istante i palpiti
del suo bel cor sentir!..
Co' suoi sospir confondere
per poco i miei sospir!...
Cielo, si può morir;
di più non chiedo.

Eccola... Oh! qual le accresce
beltà l'amor nascente!
A far l'indifferente
si seguiti così finché non viene
ella a spiegarsi.


Una Furtiva Lacrima - G. Donizetti







O círculo...


Balla, mercury passing in front of the sun


O círculo é a forma eleita
É ovo, é zero.
É ciclo, é ciência.
Nele se inclui todo o mistério
E toda a sapiência.
É o que está feito,
Perfeito e determinado,
É o que principia
No que está acabado.
A viagem que o meu ser empreende
Começa em mim,
E fora de mim,
Ainda a mim se prende.
A senda mais perigosa.
Em nós se consumando,
Passando a existência
Mil círculos concêntricos
Desenhando.

Ana Hatherly






Un sol



Munch


Mi corazón es como un dios sin lengua,
Mudo se está a la espera del milagro,
He amado mucho, todo amor fue magro,
Que todo amor lo conocí con mengua.

He amado hasta llorar, hasta morirme.
Amé hasta odiar, amé hasta la locura,
Pero yo espero algún amor natura
Capaz de renovarme y redimirme.

Amor que fructifique mi desierto
Y me haga brotar ramas sensitivas,
Soy una selva de raíces vivas,
Sólo el follaje suele estarse muerto.

¿En dónde está quien mi deseo alienta?
¿Me empobreció a sus ojos el ramaje?
Vulgar estorbo, pálido follaje
Distinto al tronco fiel que lo alimenta.

¿En dónde está el espíritu sombrío
De cuya opacidad brote la llama?
Ah, si mis mundos con su amor inflama
Yo seré incontenible como un río.

¿En dónde está el que con su amor me envuelva?
Ha de traer su gran verdad sabida...
Hielo y más hielo recogí en la vida:
Yo necesito un sol que me disuelva.

Alfonsina Storni







Amor



Jean Arp, Constellations


Vibrátil, fina, perfumada e clara,
Ondula a aragem que o amor provoca.
Longe, respira a vida. Aqui, o sonho.
Tudo é infância de águas e colinas
Na manhã dos teus olhos.
E voos, de mãos dadas.
E cantos, cantos de infinito amor,
Nos galhos, nas correntes e nas sombras veladas.

Envolve-se de nuvem nosso abraço.
Vibrátil, fina, perfumada e clara,
Ondula a aragem. Fadas e duendes
Agitam instrumentos na folhagem...

Vibrátil, fina, imperceptível, fluida,
Orquestra ao longe, no fundo dos sentidos:
Dedos de flores ondeiam sobre a pele
De céus indefinidos...

Cantam mistérios bocas fascinadas.
Abrem corolas, sobre a luz que as toca.
Vibrátil, fina, perfumada e clara,
Ondula a aragem que o amor provoca.


Natércia Freire







Papoilas



Georgia O'keeffe, poppies


estou opiada de ti
e percorres-me os nervos todos
com papoilas borboletas vermelhas

o meu corpo entrança-se de sonhos
e sente-se caminhando por dentro

aspiro-te
como se me faltasse o ar
e os perfumes dançam-me

qualquer coisa como uma droga bem forte
corpo e alma
rezam pequenas orações
gestos ritmados ao abraçar-te como quem abraça
sonhos

coisa estranha

opiada me preciso ou apenas vestida de papoilas e
muito sol com luas por dentro

para poder mastigar estes sonhos
reais como mandrágoras


Ana Mafalda Leite







Cantiga de amigo




Matisse, harmonie jaune


Nem um poema nem um verso nem um canto
tudo raso de ausência tudo liso de espanto
e nem Camões Virgílio Shelley Dante
o meu amigo está longe
e a distância é bastante.

Nem um som nem um grito nem um ai
tudo calado todos sem mãe nem pai
Ah não Camões Virgílio Shelley Dante!

o meu amigo está longe
e a tristeza é bastante.

Nada a não ser este silêncio tenso
que faz do amor sozinho o amor imenso.
Calai Camões Virgílio Shelley Dante:
o meu amigo está longe
e a saudade é bastante!

Ary dos Santos, Obra Poética






Amor é...



Vieira da Silva, Jardins suspendus


Amor é um fogo que arde sem se ver,
é ferida que dói, e não se sente;
é um contentamento descontente,
é dor que desatina sem doer.

É um não querer mais que bem querer;
é um andar solitário entre a gente;
é nunca contentar-se de contente;
é um cuidar que ganha em se perder.

É querer estar preso por vontade;
é servir a quem vence o vencedor;
é ter, com quem nos mata, lealdade.

Mas como causar pode seu favor
nos corações humanos amizade,
se tão contrário a si é o mesmo Amor?

Luís de Camões, Rimas






CET AMOUR



Chagall, Lovers Gray


Cet amour
Si violent
Si fragile
Si tendre
Si désespéré
Cet amour
Beau comme le jour
Et mauvais comme le temps
Quand le temps est mauvais
Cet amour si vrai
Cet amour si beau
Si heureux
Si joyeux
Et si dérisoire
Tremblant de peur comme un enfant dans le noir
Et si sûr de lui
Comme un homme tranquille au milieu de la nuit
Cet amour qui faisait peur aux autres
Qui les faisait parler
Qui les faisait blêmir
Cet amour guetté
Parce que nous le guettions
Traqué blessé piétiné achevé nié oublié
Parce que nous l'avons traqué blessé piétiné achevé nié oublié
Cet amour tout entier
Si vivant encore
Et tout ensoleillé
C'est le tien
C'est le mien
Celui qui a été
Cette chose toujours nouvelle
Et qui n'a pas changé
Aussi vraie qu'une plante
Aussi tremblante qu'un oiseau
Aussi chaude aussi vivante que l'été
Nous pouvons tous les deux
Aller et revenir
Nous pouvons oublier
Et puis nous rendormir
Nous réveiller souffrir vieillir
Nous endormir encore
Rêver à la mort
Nous éveiller sourire et rire
Et rajeunir
Notre amour reste là
Têtu comme une bourrique
Vivant comme le désir
Cruel comme la mémoire
Bête comme les regrets
Tendre comme le souvenir
Froid comme le marbre
Beau comme le jour
Fragile comme un enfant
Il nous regarde en souriant
Et il nous parle sans rien dire
Et moi j'écoute en tremblant
Et je crie
Je crie pour toi
Je crie pour moi
Je te supplie
Pour toi pour moi et pour tous ceux qui s'aiment
Et qui se sont aimés
Oui je lui crie
Pour toi pour moi et pour tous les autres
Que je ne connais pas
Reste là
Là où tu es
Là où tu étais autrefois
Reste là
Ne bouge pas
Ne t'en va pas
Nous qui sommes aimés
Nous t'avons oublié
Toi ne nous oublie pas
Nous n'avions que toi sur la terre
Ne nous laisse pas devenir froids
Beaucoup plus loin toujours
Et n'importe où
Donne-nous signe de vie
Beaucoup plus tard au coin d'un bois
Dans la forêt de la mémoire
Surgis soudain
Tends-nous la main
Et sauve-nous.

Jacques Prévert, Paroles






Como é natural




Van Gogh, two cut sunflowers


Vão longe os anos de intermezzo
quando a brisa indolente passeava
doce esperança à flor dos lábios mudos

Se uma folha caída se um rumor
brando acordava o silêncio mal represo
quanto alarme no ar de flores coberto

Vão longe os tempos de alvoroço
de fronteira a fronteira imaginária
rara aventura agora impessoal
uma alegria alheia que hoje amarga

Dou corda a este velho relógio de parede
pesa-me o braço que levanto
do peso de outros tempos que desperto

E um fantasma lá dos fundos do quadrante
sorri-me com tristeza e diz É tarde
talvez já seja muito tarde.


Mário Dionísio, O Silêncio Voluntário







ENCUENTRO




Pablo Picasso


Alguien entra en el silencio y me abandona.
Ahora la soledad no está sola.
Tú hablas como la noche.
Te anuncias como la sed.

Alexandra Pizarnik, los trabajos y las noches







Vladimir Maiakovsky




foto: M. Wiora


Amar não é aceitar tudo.
Onde tudo é aceito, presumo que há falta de amor.







¡Si me llamaras, sí;...




Juan Gris, La Plaza Ravignan


¡Si me llamaras, sí;
si me llamaras!
Lo dejaría todo,
todo lo tiraría:
los precios, los catálogos,
el azul del océano en los mapas,
los días y sus noches,
los telegramas viejos
y un amor.
Tú, que no eres mi amor,
¡si me llamaras!
Y aún espero tu voz:
telescopios abajo,
desde la estrella,
por espejos, por túneles,
por los años bisiestos
puede venir. No sé por dónde.
Desde el prodigio, siempre.
Porque si tú me llamas
-¡si me llamaras, sí, si me llamaras!-
será desde un milagro,
incógnito, sin verlo.
Nunca desde los labios que te beso,
nunca
desde la voz que dice: "No te vayas".

Pedro Salinas






Anna Akhmatova



Como Pedra Branca

Como pedra branca no fundo do poço
dentro de mim está uma memória.
Nem quero afastá-la, nem posso:
é sofrimento e é prazer e glória.

Julgo que quem olhar-me bem de perto
dentro em meus olhos logo pode vê-la.
E ficará mais triste e pensativo
que alguém que escute uma anedota obscena.

Eu sei que os deuses metamorfoseavam
os homens em coisas sem tirar-lhes alma.
Para que o espante da tristeza dure sempre,
em coisa da memória te mudei.

Tradução de Jorge de Sena




Nathann Altman, Anna Akhmatova



As a White Stone...

As a white stone in the well's cool deepness,
There lays in me one wonderful remembrance.
I am not able and don't want to miss this:
It is my torture and my utter gladness.

I think, that he whose look will be directed
Into my eyes, at once will see it whole.
He will become more thoughtful and dejected
Than someone, hearing a story of a dole.

I knew: the gods turned once, in their madness,
Men into things, not killing humane senses.
You've been turned in to my reminiscences
To make eternal the unearthly sadness.

Translated by Yevgeny Bonver







em fundo


Tchaikowsky
Sinfonia nº 6, en si mayor, op. 74 "Patetica"
Orquestra Sinfónica del Estado de la URSS
K. Ivanov





imagens daqui

Um pouco de Tchaikowsky?

aqui, aqui, aqui, aqui, ...







CANÇÃO DA ALMA CAIADA




Kandinsky, the red oval


Aprendi desde criança
Que é melhor me calar
E dançar conforme a dança
Do que jamais ousar

Mas às vezes pressinto
Que não me enquadro na lei:
Minto sobre o que sinto
E esqueço tudo o que sei.

Só comigo ouso lutar,
Sem me poder vencer:
Tento afogar no mar
O fogo em que quero arder.

De dia caio minh'alma
Só à noite caio em mim
por isso me falta calma
e vivo inquieto assim.

António Cícero







Partiste a minha vida...




Anni Adkins, bruised hibiscus


Partiste a minha vida em longos promontórios,
um dos quais penetra até um jardim relvado
onde a maneira doce como cruzaste as pernas
o fixou em acerada ponta dolorosa.

De longe atacas-me de ternura em riste
penetrando na solidão que te franqueio
onde se engasta o brilho dos teus olhos
e a estranha flor da tua ausência.


Egito Gonçalves, O Fósforo na Palha






Certitude




M. Wiora, flores de tília


Si je te parle c'est pour mieux t'entendre
Si je t'entends je suis sûr de comprendre

Si tu souris c'est pour mieux m'envahir
Si tu souris je vois le monde entier

Si je t'étreins c'est pour me continuer
Si nous vivons tout sera à plaisir

Si je te quitte nous nous souviendrons
Et nous quittant nous nous retrouverons.


Paul Eluard, Derniers poèmes d'amour






Duas linhas paralelas




Ingrid Wolff-Hamm, Das Unendliche


Duas linhas paralelas
Muito paralelamente
Iam passando entre estrelas
Fazendo o que estava escrito:
Caminhando eternamente
de infinito a infinito

Seguiam-se passo a passo
Exactas e sempre a par
Pois só num ponto do espaço
Que ninguém sabe onde é
Se podiam encontrar
Falar e tomar café.

Mas farta de andar sozinha
Uma delas certo dia
Voltou-se para a outra linha
Sorriu-lhe e disse-lhe assim:
"Deixa lá a geometria
E anda aqui para o pé de mim...!

Diz a outra: "Nem pensar!
Mas que falta de respeito!
Se quisermos lá chegar
Temos de ir devagarinho
Andando sempre a direito
Cada qual no seu caminho!"

Não se dando por achada
Fica na sua a primeira
E sorrindo amalandrada
Pela calada, sem um grito
Deita a mãozinha matreira
Puxa para si o infinito.

E com ele ali à frente
As duas a murmurar
Olharam-se docemente
E sem fazerem perguntas
Puseram-se a namorar
Seguiram as duas juntas.

Assim nestas poucas linhas
Fica uma estória banal
Com linhas e entrelinhas
E uma moral convergente:
O infinito afinal
Fica aqui ao pé da gente.


José Fanha






Se eu pudesse iluminar por dentro...




René Magritte, l'empire de la lumière



(O soneto que só errado ficou certo.)


Se eu pudesse iluminar por dentro as palavras de todos os dias
para te dizer, com a simplicidade do bater do coração,
que afinal ao pé de ti apenas sinto as mãos mais frias
e esta ternura dos olhos que se dão.

Nem asas, nem estrelas, nem flores sem chão
- mas o desejo de ser a noite que me guias
e baixinho ao bafo da tua respiração
contar-te todas as minhas covardias.

Ao pé de ti não me apetece ser herói
mas abrir-te mais o abismo que me dói
nos cardos deste sol de morte viva.

Ser como sou e ver-te como és:
dois bichos de suor com sombra aos pés.
Complicações de luas e saliva.


José Gomes Ferreira, Poesia IV






Aqui na orla da praia, ...




Manuel Antão, A força do mar


Aqui na orla da praia, mudo e contente do mar,
Sem nada já que me atraia, nem nada que desejar,
Farei um sonho, terei meu dia, fecharei a vida,
E nunca terei agonia, pois dormirei de seguida.

A vida é como uma sombra que passa por sobre um rio
Ou como um passo na alfombra de um quarto que jaz vazio;
O amor é um sonho que chega para o pouco ser que se é;
A glória concede e nega; não tem verdades a fé.

Por isso na orla morena da praia calada e só,
Tenho a alma feita pequena, livre de mágoa e de dó;
Sonho sem quase já ser, perco sem nunca ter tido,
E comecei a morrer muito antes de ter vivido.

Dêem-me, onde aqui jazo, só uma brisa que passe,
Não quero nada do acaso, senão a brisa na face;
Dêem-me um vago amor de quanto nunca terei,
Não quero gozo nem dor, não quero vida nem lei.

Só, no silêncio cercado pelo som brusco do mar,
Quero dormir sossegado, sem nada que desejar,
Quero dormir na distância de um ser que nunca foi seu,
Tocado do ar sem fragrância da brisa de qualquer céu.


Fernando Pessoa, Cancioneiro







je regarde la mer




Begoña Rojas, Mar



Je regarde la mer
s'élever dans l'espace
sur ses immenses ailes d'eau
s'envoler loin d'ici
loin des misères de la terre
et qui se pose pour chanter
sur l'une des branches
de l'arbre soleil


Pierre Chatillon, Le violon vert