As flores



28-3-2006




          Era preciso agradecer às flores
          Terem guardado em si,
          Límpida e pura,
          Aquela promessa antiga
          Duma manhã futura.


          Sophia de Mello Breyner Andresen, No Tempo Dividido







Brise marine



3 - 2006



La chair est triste, hélas ! et j'ai lu tous les livres.
Fuir ! là-bas fuir! Je sens que des oiseaux sont ivres
D'être parmi l'écume inconnue et les cieux !
Rien, ni les vieux jardins reflétés par les yeux
Ne retiendra ce coeur qui dans la mer se trempe
Ô nuits ! ni la clarté déserte de ma lampe
Sur le vide papier que la blancheur défend
Et ni la jeune femme allaitant son enfant.
Je partirai ! Steamer balançant ta mâture,
Lève l'ancre pour une exotique nature !

Un Ennui, désolé par les cruels espoirs,
Croit encore à l'adieu suprême des mouchoirs !
Et, peut-être, les mâts, invitant les orages,
Sont-ils de ceux qu'un vent penche sur les naufrages
Perdus, sans mâts, sans mâts, ni fertiles îlots ...
Mais, ô mon coeur, entends le chant des matelots !


Stéphane Mallarmé, Poèmes




        A carne é triste, sim, e eu li todos os livros.
        Fugir! Fugir! Sinto que os pássaros são livres,
        Ébrios de se entregar à espuma e aos céus imensos.
        Nada, nem os jardins dentro do olhar suspensos,
        Impede o coração de submergir no mar
        Ó noites! nem a luz deserta a iluminar
        Este papel vazio com seu branco anseio,
        Nem a jovem mulher que preme o filho ao seio.
        Eu partirei! Vapor a balouçar nas vagas,
        Ergue a âncora em prol das mais estranhas plagas!

        Um tédio, desolado por cruéis silêncios,
        Ainda crê no derradeiro adeus dos lenços!
        E é possível que os mastros, entre as ondas más,
        Rompam-se ao vento sobre os náufragos, sem mas-
        Tros, sem mastros, sem ilhas férteis, a vogar...
        Mas, ó meu peito, ouve a canção que vem do mar!


        Mallarmé.Trad.: Augusto de Campos, Decio Pignatari e
        Haroldo de Campos







esta es una silla






      esta es una silla
      sólo una silla
      en ella
      se sentó mi padre
      mis hermanos
      todos
      mis mejores amigos
      ahora
      está sola
      sin nadie
      una silla

      Reinaldo Pérez Só, Para morirnos de otro sueño



                        esta é uma cadeira
                        só uma cadeira
                        nela
                        sentou-se meu pai
                        meus irmãos
                        todos
                        os meus melhores amigos
                        agora
                        está sozinha
                        sem ninguém
                        uma cadeira


                        Reinaldo Pérez Só - Trad.: José Bento







Chove. Há silêncio, ...



23 - 3 - 2006




      Chove. Há silêncio, porque a mesma chuva
      Não faz ruído senão com sossego.
      Chove. O céu dorme. Quando a alma é viúva
      Do que não sabe, o sentimento é cego.
      Chove. Meu ser (quem sou) renego...

      Tão calma é a chuva que se solta no ar
      (Nem parece de nuvens) que parece
      Que não é chuva, mas um sussurrar
      Que de si mesmo, ao sussurrar, se esquece.
      Chove. Nada apetece...

      Não paira vento, não há céu que eu sinta.
      Chove longínqua e indistintamente,
      Como uma coisa certa que nos minta,
      Como um grande desejo que nos mente.
      Chove. Nada em mim sente...


      Fernando Pessoa, Cancioneiro







CANÇÃO



Klaus Oppermann
Klaus Oppermann




        Hoje venho dizer-te que nevou
        no rosto familiar que te esperava.
        Não é nada, meu amor, foi um pássaro,
        a casca do tempo que caiu,
        uma lágrima, um barco, uma palavra.

        Foi apenas mais um dia que passou
        entre arcos e arcos de solidão;
        a curva dos teus olhos que se fechou,
        uma gota de orvalho, uma só gota,
        secretamente morta na tua mão.


        Eugénio de Andrade, As Palavras Interditas







Meto-me para dentro, e fecho a janela.



Julho de 2005




Meto-me para dentro, e fecho a janela.
Trazem o candeeiro e dão as boas-noites,
E a minha voz contente dá as boas-noites.
Oxalá a minha vida seja sempre isto:
O dia cheio de sol, ou suave de chuva,
Ou tempestuoso como se acabasse o mundo,
A tarde suave e os ranchos que passam
Fitados com interesse da janela,
O último olhar amigo dado ao sossego das árvores,
E depois, fechada a janela, o candeeiro aceso,
Sem ler nada, nem pensar em nada, nem dormir,
Sentir a vida correr por mim como um rio por seu leito,
E lá fora um grande silêncio como um deus que dorme.


Alberto Caeiro, O Guardador de Rebanhos



-Aqui houve
Voz: Luísa Cruz-
Agora em http://tecum.multiply.com








DESPEDIDA



Março de 2006




Uma harpa envelhece.
Nada se ouve ao longo dos canais e os remadores
sonham junto às estátuas de treva.
A tua sombra está atrás da minha sombra e dança.
Tocas-me de tão longe, sobre a falésia, e não sei se
foi amor.
Certo rumor de cálices, uma súplica ao dealbar das
ruínas,
tudo se perdeu no solitário campo dos céus.
Uma estrela caía.
Esse fogo consumido queima ainda a lembrança do
sul, a sua extrema dor anoitecida.
Não vens jamais.
O teu rosto é a relva mutilada dos passos em que me
entristeço, a absoluta condenação.
Chove quando penso que um dia as tuas rosas floriam
no centro desta cidade.
Não quis, à volta dos lábios, a profanação do jasmim,
as tuas folhas de outubro.
Ocultarei, na agonia das casas, uma pena que esvoaça,
a nudez de quem sangra à vista das catedrais.
O meu peito abriga as tuas sementes, e morre.
Esta música é quase o vento.


José Agostinho Baptista, Paixão e Cinzas







CORAÇÃO SEM IMAGENS



13-3-2006




ao António Ramos Rosa


    Deito fora as imagens.
    Sem ti, para que me servem
    as imagens?

    Preciso habituar-me
    a substituir-te
    pelo vento,
    que está em qualquer parte
    e cuja direcção
    é igualmente passageira
    e verídica.

    Preciso habituar-me ao eco dos teus passos
    numa casa deserta,
    ao trémulo vigor de todos os teus gestos
    invisíveis,
    à canção que tu cantas e que mais ninguém ouve
    a não ser eu.

    Serei feliz sem as imagens.
    As imagens não dão
    felicidade a ninguém.

    Era mais difícil perder-te
    e, no entanto, perdi-te.

    Era mais difícil inventar-te,
    e eu te inventei.

    Posso passar sem as imagens
    assim como posso
    passar sem ti.

    E hei-de ser feliz ainda que
    isso não seja ser feliz.


    Raul de Carvalho, Obras de Raul de Carvalho






Perde-se com a idade um não sei quê



13-3-2006




      Perde-se com a idade um não sei quê
      que era talvez sombra e sabor e até tristeza
      e assim temos outra paz de inclinação
      em clareiras limpas tocadas de algum       eco
      melancólico e lúcido E quase sem ilusão
      entregamo-nos ao âmbito de uma paz
      que é a medida do mundo quando nada
      se nos oferece senão o habitar
      aquelas horas de um universo que
      é no silêncio glória obscura e transparente
      Assim nos inebriamos também da madurez
      procurando a inocente incandescência
      do tempo quando ilumina as clareiras
      e é como se nada ainda fosse passado
      na onda lenta que ascende sobre o peito
      e que desperta um vago núcleo que inicia


      António Ramos Rosa, O Livro da Ignorância







"nasceu essa acaciazinha"



11-3-2006



      Lá no craveiro que eu tinha,
      Onde uma cepa cansada
      Mal dava cravos sem vida,
      Nasceu essa acaciazinha
      Que depois foi transplantada
      E cresceu, dom do meu Deus!,
      [...]


      José Régio, Toada de Portalegre







para todos, bom fim de semana



10-3-2006



Talvez nos campos imensos, onde o lírio floresce



na impossibilidade de vos fazer a visita desejada,

ao verso de Nuno Júdice, junto o meu abraço amigo







AS CASAS



8-3-2006




    Há sempre um deus fantástico nas casas
    Em que eu vivo, e em volta dos meus passos
    Eu sinto os grandes anjos cujas asas
    Contêm todo o vento dos espaços.


    Sophia de Mello Breyner Andresen, Obra Poética







Agora que as palavras secaram



28




Agora que as palavras secaram
e se fez noite
entre nós dois,
agora que ambos sabemos
da irreversabilidade
do tempo perdido,
resta-nos este poema de amor e solidão.

No mais é o recalcitrar dos dias,
perseguindo-nos, impiedosos,
com relógios,
pessoas,
paredes demasiado cinzentas,
todas as coisas inevitavelmente
lógicas.

Que a nossa nem sequer foi uma história
diferente.
A originalidade estava toda na pólvora
dos obuses, no circunstanciado
afivelar
dos sorrisos à nossa volta
e no arcaísmo da viela onde fazíamos amor.


Eduardo Pitta, Marcas de Água







Artigo III



MINA ANGUELOVA
Mina Anguelova, Os Girassóis



Fica decretado que, a partir deste instante,
haverá girassóis em todas as janelas,
que os girassóis terão direito
a abrir-se dentro da sombra;
e que as janelas devem permanecer, o dia inteiro,
abertas para o verde onde cresce a esperança.


Thiago de Mello, Os Estatutos do Homem


Mina Anguelova,

meu beijo, meu agradecimento.





CAPRICHO



1-2-2006



      Um pássaro de outono
      no jardim;
      uma ave para desfolhar,
      como se faz às rosas,
      pena a pena;
      ou qualquer coisa assim.

      Vontade de chorar
      com o coração ferido
      num gume de açucenas.

      Vontade de beber
      sem crimes e sem erros.

      Vontade de imitar
      a boémia do luar
      aos trambolhões nos cerros.


      Carlos de Oliveira, Trabalho Poético


- Aqui houve o poema pela voz de Maria Barroso







Um pássaro de luz brinca nos teus olhos



28-2-2006




      Um pássaro de luz brinca nos teus olhos
      Adormecidos sobre a relva
      Enquanto para além do crivo da folhagem
      Pequenos sons arranham o silêncio.


      Egipto Gonçalves, O Amor Desagua em Delta







Andamos na vida



28 – 2 - 2006



        Andamos na vida
        de ficção em ficção

        Sofremos
        Amamos
        sofremos
        Depois sabemos
        que era ilusão

        Às vezes esquecemos
        outras não

        Só tu
        Mãe
        foste sempre verdade
        Agora mais do que nunca


        Teresa Rita Lopes, Cicatriz