UM CARNAVAL



24 - 2 - 2006



        Vem ao baile vem ao baile
        Pelo braço ou pelo nariz
        Vem ao baile vem ao baile
        E vais ver como te ris

        Deixa a tristeza roer
        As unhas de desespero
        Deixa a verdade e o erro
        Deixa tudo vem beber

        Vem ao baile das palavras
        Que se beijam desenlaçam
        Palavras que ficam passam
        Como a chuva nas vidraças

        Vem ao baile oh tens de vir
        E perder-te nos espelhos
        Há outros muito mais velhos
        Que ainda sabem sorrir

        Vem ao baile da loucura
        Vem desfazer-te do corpo
        E quando caíres de borco
        A tua alma é mais pura

        Vem ao baile vem ao baile
        Pelo chão ou pelo ar
        Vem ao baile baile baile
        E vais ver o que é bailar.


        Alexandre O’Neill, Poesias Completas



Dia 26 talvez não tenha acesso a pc,

antecipo o meu beijo de parabéns,

amiga.







POR OFERTAR



22-2-2006



      Trazia um livro velho.
      Histórias esperadas p'lo
      inverno
      à beira da Beira Alta.

      Era um dia ao anoitecer.


      João Miguel Fernandes Jorge, Pelo Fim da Tarde







INFÂNCIA



Mondego da infância - revisitado em 22-2-2006
São João de Areias - 'o meu Mondego'



Sabias de cor todas
as ciladas,
as grades com que te pregavam
o destino,
a mão na boca,
a língua soletrada,
o sangue, a sua cor,
a cor meridional do riso.

Era um tempo feliz, mas
não sabias. Tu não sabias
da vida
a insólita metade, o trecho
indecifrável dos dias após
dias, as linhas da mão
que pousou nas tuas,
o vento norte,
que traz água, frio, o fim da noite-
a espessa nitidez da madrugada.


António Mega Ferreira, O Tempo que Nos Cabe







Eros e Psique



20 - 2 - 2006 - mm



      Conta a lenda que dormia
      Uma Princesa encantada
      A quem só despertaria
      Um Infante, que viria
      De além do muro da estrada.

      Ele tinha que, tentado,
      Vencer o mal e o bem,
      Antes que, já libertado,
      Deixasse o caminho errado
      Por o que à Princesa vem.

      A Princesa Adormecida,
      Se espera, dormindo espera.
      Sonha em morte a sua vida,
      E orna-lhe a fronte esquecida,
      Verde, uma grinalda de hera.

      Longe o Infante, esforçado,
      Sem saber que intuito tem,
      Rompe o caminho fadado.
      Ele dela é ignorado.
      Ela para ele é ninguém.

      Mas cada um cumpre o Destino –
      Ela dormindo encantada,
      Ele buscando-a sem tino
      Pelo processo divino
      Que faz existir a estrada.

      E, se bem que seja obscuro
      Tudo pela estrada fora,
      E falso, ele vem seguro,
      E, vencendo estrada e muro,
      Chega onde em sono ela mora.

      E, inda tonto do que houvera,
      À cabeça, em maresia,
      Ergue a mão, e encontra hera,
      E vê que ele mesmo era
      A Princesa que dormia.


      Fernando Pessoa







Arco-íris



20 -2 - 2006




Arco-íris no céu.
Está sorrindo o menino
Que há pouco chorou.


Helena Kolody, Paisagem Interior








REQUIEM COM PAISAGEM



Fevereiro de 2005




Abro a cama do horizonte. Deito para o lado
os lençóis para onde correram os barcos
do sonho. Os braços caem-me para o outro lado
da cama, como se fosse o outro lado da terra. «Pensei
em ti, que me esperavas, que o teu corpo nu brilhava
nos sulcos desses barcos antigos.» Mas
o que ficou nessa cama foram as manchas cinzentas
da madrugada, pesadas como reposteiros de fogo,
frias com a ausência das aves marinhas; e
nenhuns lábios me responderam. Queria ouvir-te falar
sobre a brancura do travesseiro, os cabelos ainda
tapados por um cobertor de ventos. Olhei
as paredes vazias, os lugares de onde tiraram os quadros
com as marcas do pó na parede, um espaço vazio
de imagens. «Quem se compadece dos corpos que o tempo
                                                                                  [devorou,
perguntas-me, dos olhos ainda ofuscados com a primeira luz,
                                                                                        [das
mãos que procuram um caminho na indecisão do amor –
                                                                                    [presas
aos pregos que ninguém arrancou, furadas
pela luz negra da ferrugem, como os estigmas secos
do sexo?» Posso fazer um inventário dessas
perguntas, somá-las na memória, como datas esquecidas
que se descobrem, de súbito, nas páginas de uma velha
agenda; e só os nomes que elas encobrem me levantam
dúvidas – como se cada um deles me ferisse,
rostos que regressam a uma galeria fechada pela solidão
dos anos, os últimos da adolescência, com a sensação
de um fim que a vida vai adiando. Por que não te segui na
descida para o abismo dos quartos? Ou ainda,
por que evitei o teu olhar nessa porta que demoravas
a fechar, antes que o ar da rua me puxasse,
impedindo-me de dizer que te amava, ou apenas que a
noite estava fria – e que numa noite fria o amor é
uma solução possível? Mas é sempre assim: o tempo acaba
por corrigir cada um dos nossos gestos passados, como
se quisesse obrigar-nos a uma segunda vida; e quem se demora
a pensar neles, descobre que nenhum exercício pode trazer
um corpo aos braços que o evitaram, nem arrancar um sorriso
aos lábios que se limitam à despedida. Então, os barcos
dobram o último cabo; e um canto de marinheiros sobrepõe-se
ao ruído dos temporais, rasgando as velas da noite. O teu
rosto brilha no incêndio da manhã; os teus passos
distinguem-se sobre o ranger das madeiras: e és tu,
envolta no estranho sudário das mulheres amadas, que
abres a porta do porão, onde um cheiro a sal limpa os sentidos
de uma sujidade de nostalgias e dúvidas. «Deita-te comigo,
dizes-me; partilha o lençol corrupto da meia-noite; conta-me
por onde andaste, nestes séculos, anos, instantes
submersos pela cinza dos vulcões que o amor apagou?» Deixas-
                                                                                    [-me
esse instante; e vejo-o desaparecer-me por entre os dedos,
chama fátua com que me chamas, ainda…


Nuno Júdice, Poemas em Voz Alta



- Aqui, houve o poema pela voz: Natália Luiza-

Agora, pode-se ouvir em http://tecum.multiply.com







Houvesse um sinal a conduzir-nos



16-2-2006




    Houvesse um sinal a conduzir-nos
    E unicamente ao movimento de crescer nos guiasse. Termos das árvores
    A incomparável paciência de procurar o alto
    A verde bondade de permanecer
    E orientar os pássaros


    Daniel Faria, Poesia







Sem outro intuito



15-2-2006




      Atirávamos pedras
      à água para o silêncio vir à tona.
      O mundo, que os sentidos tonificam,
      surgia-nos então todo enterrado
      na nossa própria carne, envolto
      por vezes em ferozes transparências
      que as pedras acirravam
      sem outro intuito além do de extraírem
      às águas o silêncio que as unia.


      Luís Miguel Nava, Vulcão







Transforma-se o amador na cousa amada



14 - 2 - 2006



      Transforma-se o amador na cousa amada,
      Por virtude do muito imaginar;
      Não tenho logo mais que desejar,
      Pois em mim tenho a parte desejada.

      Se nela está a minha alma transformada,
      Que mais deseja o corpo de alcançar?
      Em si somente pode descansar,
      Pois consigo tal alma está liada.

      Mas esta linda e pura semideia,
      Que, como o acidente em seu sujeito,
      Assim com a alma minha se conforma,

      Está no pensamento como ideia;
      [E] o vivo e puro amor de que sou feito,
      Como a matéria simples busca a forma.


      Luís de Camões, Rimas







Quem me suspende da dor



10-2-2006



      Quem me suspende da dor
      no ar vazio
      envolvido
      de ternura
      e de amor
      a tanta altura do mar?


      Fernando Monteiro, Mar Branco






AMORES EU TENHO



Zé Manel - Galeria Lino António - ESAAA
Zé Manel - na Galeria Lino António - E.S.A. António Arroio




        Responde, filha, formosa filha:
        porque tardaste na fonte fria
        Amores eu tenho!


        Filha, formosa filha, responde:
        porque tardaste na fria fonte
        Amores eu tenho!

        - Tardei, minha mãe, na fonte fria,
        Cervos do monte a água volviam.
        Amores eu tenho!

        Tardei, minha mãe, na fria fonte;
        Volviam a água cervos do monte.
        Amores eu tenho!

        - Que escondes,filha, por teu amigo?
        cervos do monte não volvem o rio.
        Amores eu tenho!

        Por teu amado, filha, que escondes?
        o mar não volvem cervos do monte.
        Amores eu tenho!


        Natália Correia, in A Defesa do Poeta



Armando, Lídia, Lúcio, Pedro,

sem a vossa colaboração, não teria conseguido...

Quatro beijinhos - mui sorridentes :-)****


-"Amores eu tenho" - Natália Correia - Amália Rodrigues

Agora em http://tecum.multiply.com -






QUERIA QUE ME ACOMPANHASSES



Freight Car at Truro
Edward Hopper



      Queria que me acompanhasses
      vida fora
      como uma vela
      que me descobrisse o mundo
      mas situo-me no lado incerto
      onde bate o vento
      e só te posso ensinar
      nomes de árvores
      cujo fruto se colhe numa próxima estação
      por onde os comboios estendem
      silvos aflitos.


      Ana Paula Inácio, Poetas sem qualidades







DA FERIDA



CC.9-1-2006



      Regresso, depois da litania,
      à contemplação sem voz.
      A memória da música é
      amarga, quando estou só.
      Os quartetos de Beethoven
      arrancam-me uma parte
      do corpo em substância.
      Ferida, terei de ir ainda
      à cidade dia a dia.


      Fiama Hasse Pais Brandão, As Fábulas







murchando...



6-2-2006



Murchando e caindo
derrama a água retida
a flor da camélia

Basho. Trad.: P. Vieira






Sextina



Lisboa. 28-1-2006




      Tanto de amor se disse que não sei
      Como dizer que amor é outra coisa
      Que nem só o teu corpo me fez rei
      Nem tua alma só me deu a rosa
      Tanto se disse menos o dizer
      Esta paixão que é de todo o ser

      E ao fim do ser ainda há outra coisa
      Mais do que corpo e alma e ser não ser
      Como entre vida e morte e sexo e rosa
      Um morrer e um nascer. Como dizer
      Este reino em que sou o servo e o rei
      Como dizer se tanto e ainda não sei

      Como dizer este Elsenor sem rei
      Se tanto disse menos o dizer
      Esta paixão que sabe o que não sei
      Em Elsenor de ser e de não ser
      Senão que amor ainda é outra coisa
      Como entre o corpo e a morte o anjo e a rosa

      Como dizer do sexo a alma e a rosa
      Se amor é mais que ter e mais que ser
      Um morrer ou nascer ou outra coisa
      Entre a vida e a morte e um não dizer
      Senão que disse tanto e ainda não sei
      Como dizer de amor se servo ou rei

      Se disse tanto menos o dizer
      Esta paixão da alma que não sei
      Se é o sexo ou seu anjo ou só o ser
      Entre a vida e a morte o breve rei
      Deste reino que fica à beira-rosa
      Do teu corpo onde amor é outra coisa

      Como dizer de amor ser e não ser
      Se amor mais do que amor é outra coisa
      Mais do que ser e ter mais que dizer
      Um morrer e nascer entre anjo e rosa
      Ou entre o corpo e a alma o servo e o rei
      Como dizer se tanto e ainda não sei


      Manuel Alegre, Obra Poética




- Aqui houve:
voz: Manuel Alegre
part. musical: José Lopes e Silva e Manuel Morais-

Pode ouvir-se em http://tecum.multiply.com







ENCOMENDA POSTAL



3-10-2005




destino-te a tarefa de me sepultares
no segredo mineral da noite
com um lápis e uma máquina fotográfica

depois
fica atento ao correio
do secular laboratório nocturno enviar-te-ei
devidamente autografado
o retrato da solidão que te pertenceu

e numa encomenda à parte receberás
a revelação desta arte
onde a vida cinzelou o precário corpo
na luz afiada de um vestígio de tinta


Al Berto, Vigílias







A nossa casa



Alentejo - 19-4-2005



A nossa casa, Amor, a nossa casa!
Onde está ela, Amor, que não a vejo?
Na minha doida fantasia em brasa
Constrói-a, num instante, o meu desejo!

Onde está ela, Amor, a nossa casa,
O bem que neste mundo mais invejo?
O brando ninho aonde o nosso beijo
Será mais puro e doce que uma asa?

Sonho… que eu e tu, dois pobrezinhos,
Andamos de mãos dadas, nos caminhos
Duma terra de rosas, num jardim,

Num país de ilusão que nunca vi…
E que eu moro – tão bom! – dentro de ti
E tu, ó meu Amor, dentro de mim…


Florbela Espanca, Charneca em Flor


Para o alentejaníssimo Zéiii Maneliii,
que ama o Alentejo e Florbela,
um beijo de parabéns.


Para a Andreia e para a Carolina,
que, graças a Florbela,
começam a gostar de poesia,
dois repenicados beijinhos.








NUVENS



28-1-2006




As nuvens, que nuvens são essas Yanoá?
A pele se desintegra e os olhos caem,
tudo retorna a ser selvagem, pássaro
antigas imagens, distúrbios de cristais
Pesadelo de noite, luzes que cegam
olhar assustado, fincado em areia.
Milhões de braços invisíveis se acendem.
Rosto transformado, seu ser primitivo
E Yací estava em um dos lados do rio
em um bosque onde as plantas vinham das águas
o navio chega e nos leva com ele
as folhas se multiplicam generosas
estou dentro ou fora das águas, não sinto.
Uma carta rola com palavras escritas
Tua imagem retorna prateada
Operação devastadora dos sonhos
Ainda passaria por várias mutações
Humano é mortal até tomar consciência
Traz o universo inteiro em si mesmo
Um jaguar salta encantado, força absurda
Quem sabe vem de um planeta remoto
Não sentia rumores, pulsação do ar
Renovam-se generosas as folhas.


Márcia Theóphilo, Il fiume, l'uccello, le nuvole
Trad.: Márcia Theóphilo