REQUIEM COM PAISAGEM
Abro a cama do horizonte. Deito para o lado
os lençóis para onde correram os barcos
do sonho. Os braços caem-me para o outro lado
da cama, como se fosse o outro lado da terra. «Pensei
em ti, que me esperavas, que o teu corpo nu brilhava
nos sulcos desses barcos antigos.» Mas
o que ficou nessa cama foram as manchas cinzentas
da madrugada, pesadas como reposteiros de fogo,
frias com a ausência das aves marinhas; e
nenhuns lábios me responderam. Queria ouvir-te falar
sobre a brancura do travesseiro, os cabelos ainda
tapados por um cobertor de ventos. Olhei
as paredes vazias, os lugares de onde tiraram os quadros
com as marcas do pó na parede, um espaço vazio
de imagens. «Quem se compadece dos corpos que o tempo
                                                                                  [devorou,
perguntas-me, dos olhos ainda ofuscados com a primeira luz,
                                                                                        [das
mãos que procuram um caminho na indecisão do amor –
                                                                                    [presas
aos pregos que ninguém arrancou, furadas
pela luz negra da ferrugem, como os estigmas secos
do sexo?» Posso fazer um inventário dessas
perguntas, somá-las na memória, como datas esquecidas
que se descobrem, de súbito, nas páginas de uma velha
agenda; e só os nomes que elas encobrem me levantam
dúvidas – como se cada um deles me ferisse,
rostos que regressam a uma galeria fechada pela solidão
dos anos, os últimos da adolescência, com a sensação
de um fim que a vida vai adiando. Por que não te segui na
descida para o abismo dos quartos? Ou ainda,
por que evitei o teu olhar nessa porta que demoravas
a fechar, antes que o ar da rua me puxasse,
impedindo-me de dizer que te amava, ou apenas que a
noite estava fria – e que numa noite fria o amor é
uma solução possível? Mas é sempre assim: o tempo acaba
por corrigir cada um dos nossos gestos passados, como
se quisesse obrigar-nos a uma segunda vida; e quem se demora
a pensar neles, descobre que nenhum exercício pode trazer
um corpo aos braços que o evitaram, nem arrancar um sorriso
aos lábios que se limitam à despedida. Então, os barcos
dobram o último cabo; e um canto de marinheiros sobrepõe-se
ao ruído dos temporais, rasgando as velas da noite. O teu
rosto brilha no incêndio da manhã; os teus passos
distinguem-se sobre o ranger das madeiras: e és tu,
envolta no estranho sudário das mulheres amadas, que
abres a porta do porão, onde um cheiro a sal limpa os sentidos
de uma sujidade de nostalgias e dúvidas. «Deita-te comigo,
dizes-me; partilha o lençol corrupto da meia-noite; conta-me
por onde andaste, nestes séculos, anos, instantes
submersos pela cinza dos vulcões que o amor apagou?» Deixas-
                                                                                    [-me
esse instante; e vejo-o desaparecer-me por entre os dedos,
chama fátua com que me chamas, ainda…
Nuno Júdice, Poemas em Voz Alta
- Aqui, houve o poema pela voz: Natália Luiza-
Agora, pode-se ouvir em http://tecum.multiply.com
21 Comments:
aquele raio - a luz, a sombra!
EXCELENTE post!
A.C.S.
Divinal! Talvez o melhor post (para mim) que editaste:) O poema belo e a foto espectacular! beijos*****
Maravilhoso, amiga! A vontade é ouvir muitas e muitas vezes!
Um ótimo fim de semana, viu? E obrigada pela presença na minha ausência.
Beijocas
Estou aqui, em silêncio, apenas sentindo as palavras tão belas. Perfeitos, a imagem e o som.
Meu beijo e meu carinho.
Fico toda "suspirenta" quando venho aqui...
Belo poema e mais belo ainda assim, recitado com arte. Um beijo por esse presente. Adelaide
A mais bela maneira de ler poesia é ouvi-la dita por uma linda voz.
Parabéns.
Bom fim de semana.
Bjs.
Muito bonito... deliciei-me. Obrigado por estes momentos lindos.
Via no Blog do «Lumife» e fiquei curioso... ainda bem que dei força à minha leitura. Enfim, estou aqui. Gostei... muito mesmo!
Parabéns
Bom fim-de-semana ;)
Um dos mais belos posts que texere me tem dado contemplar. Obrigado.
Beijo grande.
Até gato pode viver a beleza nos sonhos dos poetas. Já o meu amigo Metistófeles dizia isto e é verdade! A foto é uma maravilha da natureza. Bjs.
imagem - atrai
título - agarra
1ª frase - prende
poema - ata
voz - gruda
como sair daqui?!
Bjs. JP-
**
ah! que pena que não pude ouvir o poema, não sei o que aconteceu. Pode mandar prá mim??? gostaria muito, vc bem sabe o quanto gosto né? Lindíssimo. grande beijo e ótimo fim de semana.
Que poema tão exepcional!
Gostei muitissimo, e obrigada pela tua força ;)
Mas o que se passou neste mundo bloguistico para todos se adirir, sempre a surpreender estas raparigas e rapazes!
Bjokitas larocas para ti T, e bom fim de semana :)
Deus meu! Calo-me.
Magnífico! Não sei o que mais me surpreendeu: se a força das palavras, numa leitura silenciosa, se a doçura expressada na terna voz ou se a beleza da imagem... creio que o conjunto ficou perfeito. Demoro-me a sair...grata por me proporcionar momentos de enlevo! Beijos do lado de cá.
Quase épico, uma épica de noite e sombras como cenário da realidade perturbadora dos corpos.
Beijinhos
R
Senti-me a flutuar, belissimo...
Obrigado pelo comentário no Benzina Pura.
Este blog já está nos meus favoritos.
cheguei a conselho de uma amiga e é a terceira vez que volto, em menos de 24 horas.
obrigada pelo belíssimo poema, pela voz, por estes momentos.
fb
Dizer o quê???????
Trouxe uma flor e meu carinho. Que tua semana seja feliz.
Lindo poema, excelente autor, belíssima voz, paisagem deslumbrante. Adorei, simplesmente.
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