CARTA DE OUTONO



Novembro de 2005




    Pensarás que não te escrevi antes porque o verão
    consome a energia da alma com um apetite solar; e
    porque as tempestades do crepúsculo incendiaram as
    palavras com o rápido fogo aéreo. No entanto, eu
    ouço aquelas aves que gastaram as asas na travessia
    do Espírito, cujos olhos viram o que havia de duvidoso
    nas traseiras do invisível, onde um deus culpado
    se esconde e se ouvem as vozes sem nexo dos
    anjos enlouquecidos. Essas aves deixaram de saber voar;
    agarram-se aos ramos dos arbustos e, ao fim da tarde,
    gritam em direcção às nuvens com os olhos secos e
    sem medo. Abri-lhes o peito: e encontrei as entranhas
    verdes como as folhas perenes do norte. Então,
    ouço-te bater por dentro de mim, embora estejas morto;
    e os teus dedos tenham perdido a força antiga que
    desafiava a sombra. Procuro uma entrada no átrio
    desabrigado da página; avanço entre sílabas e versos
    perdendo-me do silêncio na insistência dos passos.
    O passado é todo o dia de ontem; a vida coube-me
    neste bolso do infinito onde guardei os últimos cigarros;
    o teu amor gastou-se com um breve brilho de
    isqueiro. Saio sem desejo dos desertos de outubro
    e novembro, arrastando o outono com os pés, nas planícies
    provisórias de um esquecimento de estações.


    Nuno Júdice, in Poemas em Voz Alta
    Poemas ditos por Natália Luiza


-Esteve:
Voz: Natália Luiza-

18 Comments:

Blogger wind said...

Lindo poema, com bela foto. A sensibilidade toda a fluir:) beijos*****

12:14 da manhã  
Anonymous Anónimo said...

lindo - triste - bj cpfeio

12:15 da manhã  
Blogger hfm said...

Gosto muito desta voz e não a esqueço a ler Fernando Pessoa.

9:47 da manhã  
Blogger Filipe Lopes said...

Também passo despercebido. Mas nem por isso menos atento, observador, vendo como um danado...

10:25 da manhã  
Anonymous Anónimo said...

Quanta beleza!

Quanta tristeza!

Bjos. JP-

10:41 da manhã  
Anonymous Anónimo said...

"Saio sem desejo dos desertos de outubro
e novembro, arrastando o outono com os pés, nas planícies provisórias de um esquecimento de estações." BELÍSSIMO! Todo o poema, mas este ultimo pedaço caiu-me no goto de um modo especial.

12:07 da tarde  
Blogger gato_escaldado said...

despedidas de outono. dolentes e belas. beijos

5:16 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

ADOREI! Imagens belíssimas, algumas fortes... um pouco triste, mas é exatamente tudo na medida certa. Lindão isso. Beijão.

7:10 da tarde  
Blogger Poesia Portuguesa said...

"...Essas aves deixaram de saber voar;"

... nada mais triste quando queremos ter asas e não podemos voar...

De uma beleza Outonal... Adorei!

Um abraço terno e bom fim de semana :)

11:33 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Imagem e poema lindos...
Grata pela partilha.

Um abraço terno e bom fim de semana :)

11:35 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Angústia do criador; angústia do Amor, angústia de outono existencial.
Ou de como a 'diseuse' influenciou a minha interpretação. Em sábado à tarde, enriquecedora foi esta dupla proposta. Agradecido.

Já bem de saúde?

Beijo. A.C.S.

3:39 da tarde  
Blogger Boo said...

Belíssima carta de outono... Repleta de magia e sentimento...

Bom f.d.s. =)

bjnhs *****

8:34 da tarde  
Blogger Unknown said...

O bom gosto continua. Uma bonita imagem de Outono para um belo poema outonal e a bonita voz da Natália Luisa juntam-se e conseguem mais uma maravilha.
Beijos.

11:19 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Amiga,os problemas com os comentários continuam - a nossa Márcia diz que se devem às letrinhas de segurança do blogger. Farei teste, retirando as tais letrinhas.
Até lá, aqui fica o seu texto. Beijão para aí.



Oi amiga! Estou tentanto postar este comentário nos seu blog e não consigo. Vai por aqui mesmo! rs...

A única vantagem de ficar longe tanto tempo é que na volta há muito para se ler! E aqui, há abundância de azul e beleza.
Amiga, obrigada pelo carinho, pela presença e pelas palavras sempre animadoras, viu? Te gosto muito.
Beijo grande

11:48 da tarde  
Blogger soledade said...

Ela *diz* realmente bem... o poema desencantado.
Um beijo, T, um bom domingo

12:09 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Maravilhoso. Especialmente a última fala, que fica ecoando...
Quanto à voz, adoro o sotaque português.
Abraços.

7:13 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Bonita voz que declama o não menos bonito poema. Excelente. Beijinhos.

10:37 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

"ouço-te bater por dentro de mim, embora estejas morto;

"a vida coube-me
neste bolso do infinito


"o teu amor gastou-se com um breve brilho de isqueiro "

"Saio sem desejo dos desertos de outubro
e novembro, arrastando o outono com os pés, nas planícies
provisórias de um esquecimento de estações.
"


Fabulosos versos!
Infinitamente melhor seja 2006!
Que a chama, emergente, cresça,cresça cresça e, iluminante, nos consuma.

9:56 da manhã  

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