Avec le temps


Kasemir Malevich, Head of a Peasant Girl


Avec le temps...
Avec le temps, va, tout s'en va
On oublie le visage et l'on oublie la voix
Le coeur, quand ça bat plus, c'est pas la peine d'aller
Chercher plus loin, faut laisser faire et c'est très bien

Avec le temps...
Avec le temps, va, tout s'en va

L'autre qu'on adorait, qu'on cherchait sous la pluie
L'autre qu'on devinait au détour d'un regard
Entre les mots, entre les lignes et sous le fard
D'un serment maquillé qui s'en va faire sa nuit
Avec le temps tout s'évanouit

Avec le temps...
Avec le temps, va, tout s'en va

Mêm' les plus chouett's souv'nirs ça t'as un' de ces gueules
A la Gal'rie j'farfouille dans les rayons d'la mort
Le samedi soir quand la tendresse s'en va tout seule
Avec le temps...
Avec le temps, va, tout s'en va

L'autre à qui l'on croyait pour un rhume, pour un rien
L'autre à qui l'on donnait du vent et des bijoux
Pour qui l'on eût vendu son âme pour quelques sous
Devant quoi l'on s'traînait comme traînent les chiens
Avec le temps, va, tout va bien

Avec le temps...
Avec le temps, va, tout s'en va

On oublie les passions et l'on oublie les voix
Qui vous disaient tout bas les mots des pauvres gens
Ne rentre pas trop tard, surtout ne prends pas froid
Avec le temps...
Avec le temps, va, tout s'en va

Et l'on se sent blanchi comme un cheval fourbu
Et l'on se sent glacé dans un lit de hasard
Et l'on se sent tout seul peut-être mais peinard
Et l'on se sent floué par les années perdues
Alors vraiment
Avec le temps on n'aime plus.

Léo Ferré



[envelhecimento de neurónio, ocupação de executivo, distracção de poeta
sub- dito, entre-dito,
esquecido
monólogo interior, corrente de pensamento, solilóquio
mas, para quê complicar? há as intenções!]








Teia




Se da baba o insecto faz a teia,
se com choro porém não sei prender-te,
do céu, que era de cinza, direi verde,
e da terra e das lágrimas areia.

E da forma direi que foi ideia,
para que à noite o corpo não desperte.
Do perdido direi que não se perde
se ao menos nestes versos se encadeia.

Do cabelo, se louro, direi preto;
do amor que sofri direi soneto,
ante a luz tão corpórea que o invade…

Nas redes da ficção ficarás presa
e acordarás, mais tarde, na surpresa
de ser outra por toda a eternidade.

David Mourão-Ferreira, Infinito Pessoal



[Ed è il pensiero
della morte che, in fine, aiuta a vivere.
Umberto Saba]






Que me quereis, perpétuas saudades


Do Castelo de Almourol, o rio Tejo


Que me quereis, perpétuas saudades,
Com que sonhos ainda me abismais?
O tempo é um rio que não pára mais,
Nem se repetem as visões das margens.

Como se diz adeus a quem morreu,
Dizem adeus os anos já passados
A desejos iguais, desigualados
Se a vontade mudando os esqueceu.

Aquilo a que queria mudou tanto
Que é outro amor; e meu prazer dum dia
Maldiz o de hoje, ao novo desencanto.

Cada enganosa esperança em meu desejo
Passa por ela o tempo e queda, fria,
Como Almourol a ver passar o Tejo.

Carlos de Oliveira, Trabalho Poético


[Saudades?
Não para quem anda a
dizer olá a pessoas que gostam de se ver.]






em fundo


Maria João Pires - Mozart - Klaviersonaten


imagem: da minha janela





Allégeance


Josée, Passage du Temps


Dans les rues de la ville, il y a mon amour.
Peu importe où il va dans le temps divisé.
Il n'est plus mon amour : chacun peut lui parler.
Il ne se souvient plus qui, au juste, l'aima.

Il cherche son pareil dans le voeu des regards.
L'espace qu'il parcourt est ma fidélité.
Il dessine l'espoir, puis, léger, l'éconduit.

Je vis au fond de lui comme une épave heureuse.
A son insu, ma liberté est son trésor !
Dans le grand méridien où s'inscrit son essor,
Ma solitude se creuse.

Dans les rues de la ville, il y a mon amour.
Peu importe où il va dans le temps divisé.
Il n'est plus mon amour : chacun peut lui parler.
Il ne se souvient plus qui, au juste, l'aima
Et l'éclaire de loin pour qu'il ne tombe pas !

René Char


[F. questionava: "Quem, de facto, o amou?"
Um beijo, amicus dilectus]







Mulheres de preto


Fotografia de Guilherme Carreiro



Há muito que são velhas, vestidas
de preto até à alma.
Contra o muro
defendem-se do sol de pedra;
ao lume
furtam-se ao frio do mundo.
Ainda têm nome? Ninguém
pergunta, ninguém responde.
A língua, pedra também.

Eugénio de Andrade, Trinta Poemas


Grata a Guilherme Carreiro






WHEN YOU ARE OLD


Matisse, Janela interior com miosótis


WHEN you are old and grey and full of sleep,
And nodding by the fire, take down this book,
And slowly read, and dream of the soft look
Your eyes had once, and of their shadows deep;

How many loved your moments of glad grace,
And loved your beauty with love false or true,
But one man loved the pilgrim Soul in you,
And loved the sorrows of your changing face;

And bending down beside the glowing bars,
Murmur, a little sadly, how Love fled
And paced upon the mountains overhead
And hid his face amid a crowd of stars.

William Butler Yeats, The Rose






Luís de Camões - Manuel Alegre


Aquela triste e leda madrugada

Aquela triste e leda madrugada,
cheia toda de mágoa e de piedade,
enquanto houver no mundo saudade
quero que seja sempre celebrada.

Ela só, quando, amena e marchetada.
saía, dando ao mundo claridade,
viu apartar-se de üa outra vontade,
que nunca poderá ver-se apartada.

Ela só viu as lágrimas em fio
que de uns e de outros olhos derivadas,
se acrescentaram em grande e largo rio.

Ela ouviu as palavras magoadas
que puderam tornar o fogo frio
e dar descanso às almas condenadas.

Luís de Camões, Rimas



Helga Butzer Felleisen, Tears


E alegre se fez triste

Aquela clara madrugada que
viu lágrimas correrem no teu rosto
e alegre se fez triste como se
chovesse de repente em pleno Agosto.

Ela só viu meus dedos nos teus dedos
meu nome no teu nome. E demorados
viu nossos olhos juntos nos segredos
que em silêncio dissemos separados.

A clara madrugada em que parti.
Só ela viu teu rosto olhando a estrada
por onde um automóvel se afastava.

E viu que a pátria estava toda em ti.
E ouviu dizer-me adeus: essa palavra
que fez triste a clara madrugada.

Manuel Alegre, Trinta Anos de Poesia






em fundo


Jean Sibelius, The Swan of Tuonela
Berliner Philharmoniker - Herbert von Karajan



[a memória é curta
e o vento existe]





LA TENDRESSE


Piam, Tendresse

Pour un peu de tendresse
Je donnerais les diamants
Que le diable caresse
Dans mes coffres d'argent
Pourquoi crois-tu la belle
Que les marins au port
Vident leurs escarcelles
Pour offrir des trésors
A de fausses princesses
Pour un peu de tendresse

Pour un peu de tendresse
Je changerais de visage
Je changerais d'ivresse
Je changerais de langage
Pourquoi crois-tu la belle
Qu'au sommet de leurs chants
Empereurs et ménestrels
Abandonnent souvent
Puissances et richesses
Pour un peu de tendresse

Pour un peu de tendresse
Je t'offrirais le temps
Qu'il reste de jeunesse
A l'été finissant
Pourquoi crois-tu la belle
Que monte ma chanson
Vers la claire dentelle
Qui danse sur ton front
Penché vers ma détresse
Pour un peu de tendresse

Jacques Brel



* Imagem:
www.comhonfleur.com/ piam/tendresse.htm







em fundo


Debussy , La Mer , Trois Esquisses Symphoniques
Chicago Symphony Orchestra – Daniel Barenboim





CAMPO DE FLORES


William Bouguereau, Crepuscule


Deus me deu um amor no tempo de madureza,
quando os frutos ou não são colhidos ou sabem a verme.
Deus – ou foi talvez o Diabo - deu-me este amor maduro,
e a um e outro agradeço, pois que tenho um amor

Pois que tenho um amor, volto aos mitos pretéritos
e outros acrescento aos que amor já criou.
Eis que eu mesmo me torno o mito mais radioso
e talhado em penumbra sou e não sou, mas sou.

Mas sou cada vez mais, eu que não me sabia
e cansado de mim julgava que era o mundo
um vácuo atormentado, um sistema de erros.
Amanhecem de novo as antigas manhãs
que não vivi jamais, pois jamais me sorriram.

Mas me sorriam sempre atrás de tua sombra
imensa e contraída como letra no muro
e só hoje presente.

Deus me deu um amor porque o mereci.
De tantos que já tive ou tiveram em mim,
o sumo se espremeu para fazer um vinho
ou foi sangue, talvez, que se armou em coágulo.

E o tempo que levou uma rosa indecisa
A tirar sua cor dessas chamas extintas
Era o tempo mais justo. Era tempo de terra.

Onde não há jardim, as flores nascem de um
secreto investimento em formas improváveis.

Hoje tenho um amor e me faço espaçoso
para arrecadar as alfaias de muitos
amantes desgovernados, no mundo, ou triunfantes,
e ao vê-los amorosos e transidos em torno,
o sagrado terror converto em jubilação.

Seu grão de angústia amor já me oferece
na mão esquerda. Enquanto a outra acaricia
os cabelos e a voz e o passo e a arquitetura
e o mistério que além faz os seres preciosos
à visão extasiada.

Mas, porque me tocou um amor crepuscular,
há que amar diferente. De uma grave paciência
ladrilhar minhas mãos. E talvez a ironia
tenha dilacerado a melhor doação.
Há que amar e calar.
Para fora do tempo arrasto meus despojos
e estou vivo na luz que baixa e me confunde

Vinicius de Moraes


*imagem: www.secrel.com.br/ jpoesia/feito08.html

[no estranho vai
que não vem,
a âncora clássica:

Aime qui t'aime. Va à qui vient à toi.

Donne à qui donne. Mais rien à qui ne donne rien.
Hesíodo, in Les travaux et les jours, La sagesse des anciens]






Sabrás que no te amo y que te amo


Aphrodite, Pan et l'Amour, 100 aC

SABRÁS que no te amo y que te amo
puesto que de dos modos es la vida,
la palabra es un ala del silencio,
el fuego tiene una mitad de frío.
Yo te amo para comenzar a amarte,
para recomenzar el infinito
y para no dejar de amarte nunca:
por eso no te amo todavía.
Te amo y no te amo como si tuviera
en mis manos las llaves de la dicha
y un incierto destino desdichado.
Mi amor tiene dos vidas para amarte.
Por eso te amo cuando no te amo
y por eso te amo cuando te amo.

Pablo Neruda, Cien Sonetos de Amor



Ouvir Neruda


 Na LER DEVAGAR 3 dias para Pablo Neruda

- Dia 23 de Setembro às 22.00 h, Conferência sobre a Obra de Pablo Neruda,
com Fernando Pinto do Amaral e Miguel Vikeira.
Apresentação de livros de Poesia e Prosa em Português e Castelhano.

- Dia 24 de Setembro às 22.00 h, Espectáculo de canções e poesia de Pablo Neruda, com Julián del Valle y Rui Meira.

- Dia 25 de Setembro às 22.00 h, Filme "Ardiente Paciencia", exposição
relativa a este filme, com a presença do seu realizador Sr. Henrique Espíritu Santo





o pequeno demiurgo

a criação do homem
Michelangelo Buonarroti



ao Hélder Moura Pinheiro


escrevo barco e uma quilha fende o vastíssimo mar
e as árvores crescem dos espaços enevoados
entre olhar e olhar movem-se
animais presos à terra com suas plumagens de ferro
e de orvalho de ouro quando a lua se eclipsa
comunicando-lhes o cio e a nómada alegria de viver

penso outono ou inverno
e o lume resinoso dos pinhais escorre sobre o rosto
sobre o corpo em tímidos gestos
eis o tempo
do Capricórnio reduzido ao esconderijo tatuado
na asa mineral da ave em pleno voo e digo nuvens
relâmpago erva águas
homem
movimento do susto oceanos sal exaustos corpos
transumantes paixões digo
e surge irrompe escorre ergue-se move-se vive
morre
mas não julguem ser trabalho simples nomear
arrumar e desordenar o mundo

para que não se apague esta trémula escrita
preciso do sonho e do pesadelo
da proximidade vertiginosa dos espelhos e
de pernoitar no fundo de mim com as mãos sujas
pelo árduo trabalho de construir os gestos exactos
da alegria que por descuido deus abandonou ao cansaço
no fim do sétimo dia

Al Berto, O Medo





Ítaca


Munch, The dance of Life


Não vale a pena suportar tanto castigo.
Procuras Ítaca. Mas só há esse procurar.
Onde quer que te encontres está contigo
dentro de ti em casa na distância
onde quer que procures há outro mar
Ítaca é tua própria errância.

Manuel Alegre, in Rosa do Mundo
- 2001 poemas para o futuro




Jacinthe Dugal-Lacroix, Freedom


Quando partires de regresso a Ítaca.
deves orar por uma viagem longa,
plena de aventuras e de experiências.
Ciclopes, Lestrogónios, e mais monstros,
um Poseidon irado – não os temas,
jamais encontrarás tais coisas no caminho,
se o teu pensar for puro, e se um sentir sublime
teu corpo toca e o espírito te habita.
Ciclopes, Lestrogónios, e outros monstros,
Poseídon em fúria – nunca encontrarás,
se não é na tua alma que os transportes
ou ela os não erguer perante ti.

Deves orar por uma viagem longa.
Que sejam muitas as manhãs de Verão,
quando, com que prazer, com que deleite,
entrares em portos jamais antes vistos!
Em colónias fenícias deverás deter-te
para comprar mercadorias raras:
coral e madrepérola, âmbar e marfim,
e perfumes subtis de toda a espécie:
compra desses perfumes quanto possas,
E vai ver as cidades do Egipto,
para aprenderes com os que sabem muito.

Terás sempre Ítaca no teu espírito,
que lá chegar é o teu destino último.
Mas não te apresses nunca na viagem.
É melhor que ela dure muitos anos,
que sejas velho já ao ancorar na ilha,
rico do que foi teu pelo caminho,
e sem esperar que Ítaca te dê riquezas.

Ítaca deu-te essa viagem esplêndida.
Sem Ítaca, não terias partido.
Mas Ítaca não tem mais nada para dar-te.

Por pobre que a descubras, Ítaca não te traiu.
Sábio como és agora, senhor de tanta experiência,
terás compreendido o sentido de Ítaca.

Constantino Cavafy, 90 e Mais Quatro Poemas
- versão de Jorge de Sena







Gift




You tell me that silence
is nearer to peace than poems
but if for my gift
I brought you silence
(for I know silence)
you would say
This is not silence
this is another poem
and you would hand it back to me.

Leonard Cohen,
Stranger Music - Selected Poems and Songs


[da inacessível descoberta
ao ruidoso jogo de palavras]





le coeur...



le coeur a ses raisons que la raison ne connaît point

René Descartes



AO LUAR
CINE-ARTE
DICIONÁRIO DA PINTURA UNIVERSAL
ERRANTE
FATA
FAZENDO CAMINHO II
O TANGARANHO VERMELHO
PODIAM SER MAIS







em fundo

Edward Hopper, Morning sun


Elis Regina & Tom Jobim, Por toda a Minha Vida
(Pedro Almodóvar, hable con ella)

[rememoração de meteórico espaço

entre Eros e Tanatos,

a música, essa, necessariamente, é outra.]






As férias


Nello Nuno, Ampulheta


Era uma rosa azul de água amarrada
Um palácio de cheiros um terraço
E uma jarra de amigos derramada
Da casa até ao mar como um abraço.

Era a intensa e clara madrugada
Com cigarras dormindo no regaço
E a ampulheta do sono defraudada
No tempo cada dia mais escasso.

Era um país de urzes e lilases
De tardes sonolentas espreguiçando
Um aroma de nardos pelo chão

E bandos de meninas e rapazes
Correndo amando rindo e adiando
A minha inexorável solidão.

Ary dos Santos, O sangue das Palavras






"Não sei se dor..."


Van Gogh, Tree Sunflowers


Não sei se dor
Ou muito amor
Eu sinto.

Mas isto é maior do que a morte;
Não posso mais.
Eu minto.

Ruy Cinatti, Anoitecendo, a Vida Recomeça


[quão redutora é a consulta de dicionários para clarificar sentimentos!]






Yo no te pido


Georgia O'Keeffe. Evening Star, III


Yo no te pido que me bajes
una estrella azul
solo te pido que mi espacio
llenes con tu luz.

Yo no te pido que me firmes
diez papeles grises para amar
sólo te pido que tu quieras
las palomas que suelo mirar.

De lo pasado no lo voy a negar
el futuro algún día llegara
y del presente
que le importa a la gente
si es que siempre van a hablar.

Sigue llenando este minuto
de razones para respirar
no me complazcas no te niegues
no hables por hablar.

Yo no te pido que me bajes
una estrella azul
solo te pido que mi espacio
llenes con tu luz.

Mario Benedetti



* imagem: http://www.moma.org/collection/depts/drawings/blowups/draw_011.html







Desejos vãos


Picasso, Blue Nude


Eu queria ser o Mar de altivo porte
Que ri e canta, a vastidão imensa!
Eu queria ser a Pedra que não pensa,
A pedra do caminho, rude e forte!

Eu queria ser o Sol, a luz intensa,
O bem do que é humilde e não tem sorte!
Eu queria ser a Árvore tosca e tensa
Que ri do mundo vão e até da morte!

Mas o Mar também chora de tristeza...
As árvores também, como quem reza,
Abrem, aos Céus, os braços, como um crente!

E o Sol, altivo e forte, ao fim de um dia,
Tem lágrimas de sangue na agonia!
E as Pedras... essas... pisa-as toda a gente!...

Florbela Espanca, Livro de Mágoas, in Sonetos






em fundo


Antonio Vivaldi, I Quatro Stagioni


*imagem: Alphonse Mucha





Outono




Uma lâmina de ar
atravessando as portas. Um arco,
uma flecha cravada no outono. E a canção
que fala das pessoas. Do rosto e dos lábios das pessoas.
E um velho marinheiro grave, rangendo o cachimbo como
uma amarra. À espera do mar. Esperando o silêncio.
É Outono. Uma mulher de botas atravessa-me a tristeza
quando saio para a rua, molhado, como um pássaro.
Vêm de muito longe as minhas palavras, quem sabe se
da minha revolta última. Ou do teu nome que repito.
Hoje há soldados eléctricos. Uma parede
cumprimenta o sol. Procura-se viver.
Vive-se, de resto, em todas as ruas, nos bares e nos cinemas.
Há homens e mulheres que compram o jornal e amam-se
como se, de repente, não houvesse mais nada senão
a imperiosa ordem de (se) amarem.
Há em mim uma ternura desmedida pelas palavras.
Não há um nome para a tua ausência. Há um muro
que os meus olhos derrubam. Um estranho vinho
que a minha boca recusa. É Outono.
A pouco e pouco despem-se as palavras.

Joaquim Pessoa, 125 Poemasantologia poética






"grito"

Munch, O Grito


Wer, wenn ich schriee, hörte mich denn aus der Engel Ordnungen?

Rainer Maria Rilke






Petrarca - Di Cosimo - Camões

Pace non trovo

Pace non trovo, e non ó da far guerra
E temo e spero, ed ardo e son un ghiaccio,
E volo sopra’l cielo e giaccio in terra
E nulla stringo e tutto’l mondo abbraccio.

Tal m’ha in prigion che non m’apre né serra,
Nè per suo mi riten né scoglie il laccio,
E non m’ancide Amor e non mi sferra,
Nè mi vuol vivo né mi trae d’impaccio.

Veggio senza occhi; e no ò língua, e grido,
E bramo di perir, e cheggio aiuta,
Ed ho in ódio me stesso ed amo altrui.

Pascomi di dolor, piangendo rido,
Egualmente mi spiace morte e vita:
In questo stato son, Donna, per vui.

Petrarca, Cancioneiro



Piero di Cosimo, Simonetta Vespuci


Tanto do meu estado me acho incerto

Tanto do meu estado me acho incerto,
Que, em vivo ardor, tremendo estou de frio;
Sem causa, juntamente choro e rio,
O mundo todo abarco, e nada aperto.

É tudo quanto sinto um desconcerto;
Da alma um fogo me sai, da vista um rio;
Agora espero, agora desconfio;
Agora desvario, agora acerto.

Estando em terra, chego ao Céu voando;
Num’hora acho mil anos, e é de jeito
Que em mil anos não posso achar um’hora.

Se me pergunta alguém, porque assi ando,
Respondo que não sei; porém suspeito
Que só porque vos vi, minha Senhora.

Camões, Rimas





em fundo


Maria João Pires, Beethoven, Sonatas Quasi una Fantasia

[e de fantasias também vivemos]





A.D.N.


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I

Afinal sou assim, infeliz e volúvel,
Porque minha alma guarda uma ordem diversa
De pulsões celulares ao longo do seu eixo:
Decifre-me quem saiba, - que, dispersa,
Com nome A.D.N. aqui na cruz a deixo.

II

Nervo a pavor, fonte renal de rijo,
Cor dos meus olhos, estatura, gosto,
Quanto me importo, ó Deus, quanto me aflijo,
Tudo A.D.N. inscreve no meu rosto.

Vitorino Nemésio, Limite de Idade






FOREVER GONE



The rose is now forever gone
The scent remains the whole life long
And visions of a petal's hue
Abide within the depth of you

The wine he poured and slowly sipped
Remains on wetness of your lip
A taste so sweet does not depart
Embedded in a tender heart

A touch of silk, a feel of soft
The sense of rising up aloft
To touch the clouds, to soar the sky
Still dwells in reminiscent eye

How well we save the little parts
Of sweetness wrapped within our hearts
And never count the solemn tears
That fill the soul throughout the years

His words are scrolled in lyric rhyme
That live forever in your mind
His eyes that once enchanted yours
Are diamond's gleam that still allures

The rose yet blossoms in your eyes
It is a flower that never dies

Elizabeth Santos


[à força de uma mão - já sentida
ao ombro - pressentido
a uma lágrima que não cai]





Every Poem is an Epitaph




Desfiz meu corpo nas vivas marés
que os versos me traziam. Solidão
mil vezes retomada, sombra e pó,
palavras que nos doem mais de perto:
tudo desfez meu corpo e neste mar
um navegante encontra o seu deserto.

Luís Filipe Castro Mendes, Outras Canções


[a uns versos "que [me doeram] mais de perto"]






A minha solidão


Edward Hopper


(Durante dias andei a ruminar estes versos.)

A minha solidão
não é uma invenção
para enfeitar noites estreladas...

...Mas este querer arrancar a própria sombra do chão
e ir com ela pelas ruas de mãos dadas.

...Mas este sufocar entre coisas mortas
e pedras de frio
onde nem sequer há portas
para o Calafrio.

...Mas este rir-me de repente
no poço das noites amarelas...
- única chama consciente
com boca nas estrelas.

...Mas este eterno Só-Um
(mesmo quando me queima a pele o teu suor)
- sem carne em comum
com o mundo em redor.

...Mas este haver entre mim e a vida
sempre uma sombra que me impede
de gozar na boca ressequida
o sabor da própria sede.

...Mas este sonho indeciso
de querer salvar o mundo
- e descobrir afinal que não piso
o mesmo chão do pobre e do vagabundo.

...Mas este saber que tudo me repele
no vento vestido de areia...
E até, quando a toco, a própria pele
me parece alheia.

Não. A minha solidão
não é uma invenção
para enfeitar o céu estrelado...

...mas este deitar-me de súbito a chorar no chão
e agarrar a terra para sentir um Corpo Vivo a meu lado.

José Gomes Ferreira





sete luas




Há noites que são feitas dos meus braços
e um silêncio comum às violetas
e há sete luas que são sete traços
de sete noites que nunca foram feitas.

Há noites que levamos à cintura
como um cinto de grandes borboletas.
E um risco a sangue na nossa carne escura
duma espada à bainha de um cometa.

Há noites que nos deixam para trás
enrolados no nosso desencanto
e cisnes brancos que só são iguais
à mais longínqua onda de seu canto.

Há noites que nos levam para onde
o fantasma de nós fica mais perto:
e é sempre a nossa voz que nos responde
e só o nosso nome estava certo.

Natália Correia, Sonetos Românticos


[In memoriam:
desse espaço outro
de Natália Correia, nascida a 13 de Setembro de 1923]







Vasco da Gama


Syd Art, Destiny

Somos nós que fazemos o destino.
Chegar à Índia ou não
É um íntimo desígnio da vontade.
Os fados a favor
E a desfavor,
São argumentos da posteridade.

O próprio génio pode estar ausente
Da façanha.
Basta que nos momentos de terror,
Persistente,
O ânimo enfrente
A fúria de qualquer Adamastor.

O renome é o salário do triunfo.
O que é preciso, pois, é triunfar.
Nunca meia viagem consentida!
Nunca meia medida
Do vinho que nos há-de embriagar!

Miguel Torga, Poemas Ibéricos


[destino! quantas razões (in-válidas) em seu nome!]





em fundo

Maria Callas, La Forza del Destino, Verdi

* imagem: Fredrick Hart, Destiny






uma noite acordarei...



Uma noite acordarei junto ao corpo infindável
da amada, e meu sangue não se encantará.
Então, rosa a rosa murcharão meus ombros.
Quer dizer que a sombra carregará meus sentidos
de distância, como se tudo fosse o cheiro
que as ervas pungentemente perdem
através do silêncio.
Plácido chegarei à mesa, e de súbito
meu coração se atravessará de gelo puro.
O vinho? Perguntarei. Flores de sal cobrirão
a luz poderosa do meu olhar.
Tempo, tempo. Eu próprio perguntarei no recente
pasmo da minha carne: o vinho?
Rosa a rosa murcharão meus ombros.

Então lembrarei a vermelha resina, o espesso
murmúrio do sangue,
o ocre e sobrenatural aroma das acácias.
Tentarei encontrar uma forma.
Com beijos antigos um momento ainda queimarei
o corpo solitário da amada, direi palavras
de uma ternura azebre.
E uma vez mais me perderei, dizendo: o vinho?
Rosa a rosa murcharão meus ombros.

Herberto Hélder, A colher na boca






Hemos perdido aun...



Hemos perdido aun este crepúsculo.
Nadie nos vió esta tarde con las manos unidas,
mientras la noche azul caía sobre el mundo.

He visto desde mi ventana
la fiesta del poniente en los cerros lejanos.

A veces como una moneda
se encendía un pedazo de sol entre mis manos.

Yo te recordaba con el alma apretada
de esa tristeza que tú me conoces.

Entonces dónde estabas?
Entre qué gentes?
Diciendo qué palabras?
Por qué se me vendrá todo el amor de golpe
cuando me siento triste, y te siento lejana?

Cayó el libro que siempre se toma en el crepúsculo,
y como un perro herido rodó a mis pies mi capa.

Siempre, siempre te alejas en las tardes
hacia donde el crepúsculo corre borrando estatuas.

Pablo Neruda, Vinte Poemas de Amor e Uma Canção Desesperada


[recordando o outro 11 de Setembro, o de 1973]



De nenhum fruto queiras só metade.

Miguel Torga


[beijo
naturalmente!]




Sísifo

(Coimbra, 27 de Dezembro de 1977)


Recomeça...

Se puderes,

Sem angústia e sem pressa.

E os passos que deres,

Nesse caminho duro

Do futuro,

Dá-os em liberdade.

Enquanto não alcances

Não descanses.

De nenhum fruto queiras só metade.


E, nunca saciado,

Vai colhendo

Ilusões sucessivas no pomar.

Sempre a sonhar

E vendo,

Acordado,

O logro da aventura.

És homem, não te esqueças!

Só é tua a loucura

Onde, com lucidez, te reconheças.


Miguel Torga, Antologia Poética





Chanson


António Canova, Eros e Psique

Dans l'amour la vie a encore
L'eau pure de ses yeux d'enfant
Qui s'ouvre sans savoir comment
Sa bouche est encore une fleur

Dans l'amour la vie a encore
Ses mains agrippantes d'enfant
Ses pieds partent de la lumière
Et ils s'en vont vers la lumière

Dans l'amour la vie a toujours
Un coeur léger et renaissant
Rien n'y pourra jamais finir
Demain s'y allège d'hier.

Paul Eluard, Derniers poèmes d'amour


[de um outro espaço
o do diálogo em solilóquio]





Musa


Eustache LE SUEUR, Trois Muses : Melpomène, Erato et Polymnie
1646, Paris, Musée du Louvre

Musa ensina-me o canto
Venerável e antigo
O canto para todos
Por todos entendido

Musa ensina-me o canto
O justo irmão das coisas
Incendiador da noite
E na tarde secreto

Musa ensina-me o canto
Em que eu mesma regresso
Sem demora e sem pressa
Tornada planta ou pedra

Ou tornada parede
Da casa primitiva
Ou tornada o murmúrio
Do mar que a cercava

(Eu me lembro do chão
De madeira lavada
E do seu perfume
Que atravessava)

Musa ensina-me o canto
Onde o mar respira

Sophia de Mello Breyner Andresen, Signo






Aniversário


Vincent Van Gogh, Vase with Irises against a yellow background

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu era feliz e ninguém estava morto.
Na casa antiga, até eu fazer anos era uma tradição de há séculos,
E a alegria de todos, e a minha, estava certa como uma religião qualquer.
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu tinha a grande saúde de não perceber coisa nenhuma,
De ser inteligente para entre a família,
E de não ter as esperanças que os outros tinham por mim.
Quando vim a ter esperanças, já não sabia ter esperanças.
Quando vim a olhar pela vida, perdera o sentido da vida.

Sim, o que fui de suposto a mim mesmo,
O que fui de coração e parentesco,
O que fui de serões de meia-província,
O que fui de amarem-me e eu ser menino,
O que fui – ai, meu Deus!, o que só hoje sei que fui...
A que distância!...
(Nem o acho...)
O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!

O que eu sou hoje é como a humidade no corredor do fim da casa,
Pondo grelado nas paredes...
O que eu sou hoje (e a casa dos que me amaram treme através das minhas lágrimas),
O que eu sou hoje é terem vendido a casa,
É terem morrido todos,
É estar eu sobrevivente a mim-mesmo como um fósforo frio...

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos...
Que meu amor, como uma pessoa, esse tempo!
Desejo físico da alma se encontrar ali outra vez,
Por uma viagem metafísica e carnal,
Com uma dualidade de eu para mim...
Comer o passado como pão de fome, sem tempo de manteiga nos dentes!

Vejo tudo outra vez com uma nitidez que me cega para o que há aqui...
A mesa posta com mais lugares, com melhores desenhos na loiça, com mais copos,
O aparador com muitas coisas – doces, frutas, o resto na sombra debaixo do alçado –,
As tias velhas, os primos diferentes, e tudo era por minha causa,
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos...

Pára, meu coração!
Não penses! Deixa o pensar na cabeça!
Ó meu Deus, meu Deus, meu Deus!
Hoje já não faço anos.
Duro.
Somam-se-me dias.
Serei velho quando o for.
Mais nada.
Raiva de não ter trazido o passado roubado na algibeira!...

O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!...

Álvaro de Campos, Poemas


Em memória dos minutos que quase
festejaram o dia dos meus anos.





em fundo

Franz Schuber, Schwanengsang





Canção autobiográfica


Camille Claudel, La Danaïde

aos quarenta e dois anos, com um cão e o silêncio
da sua pata cúmplice, a solidão é uma
destreza atormentada; e o coração o incerto secretário
de agonia e desejo, variantes da alma.
aos quarenta e dois anos, com um cão e o silêncio.

canção, canção que nunca acabarias
de te escrever, vaivém das
tantas coisas.

Vasco Graça Moura, Os Rostos Comunicantes


sem quarenta e dois anos, sem um cão
com silêncio, com solidão





Mais uma noite, amor


Larionov, raionismo

Mais uma noite, amor. Ao recordar-te
retomo os fins do mundo, a cinza, os dias
manchados de outras lágrimas. Sabias
como eu a cor das sombras, essa arte

que nos engana agora e se reparte
por esquinas e cafés. Já não me guias
os muitos passos vãos, as fantasias
da minha falsa vida. Vou deixar-te

fugindo-me. Na chuva, sem ninguém,
apenas alguns vultos, o que vem
«e dói não sei porquê» -este deserto

onde te vejo, imagem outra vez,
até de madrugada. O que me fez
sentir o muito longe aqui tão perto?


Fernando Pinto do Amaral, A Escada de Jacob






Il est très simple


Jim Dine, The Woodcut Self

Il est très simple: on ne voit bien qu'avec le coeur.

Antoine de Saint- Exupéry, Le Petit Prince





concerto para uma só voz


Deedra Ludwig, Alchemy


a minha
: no mais profundo silêncio.

Márcia Maia, um tolo desejo de azul