CALÇADA À PORTUGUESA



Lisboa, Parque das Nações
in CAIS, Círculo de Apelo à Integração dos Sem-abrigo
Nº 54 - Janeiro/Fevereiro de 2001



O mar sai das mãos destes calceteiros
que logo de manhã se ajoelham na rua
a bater
nos cubos de pedra
como se fossem pães de um tempo
inacabado.
Sisudos e pacientes limpam o corpo negro
do pó branco do trabalho
e avançam lentamente aos pés
de quem anda a correr pelos próprios meios
e mundos.
O mar não se devia perder
em minúcias citadinas de raças que tentam conviver
na sobrevivência.
Mas o suor é uma água nostálgica
que envolve a carne frágil
das mulheres
com seus carrinhos de compras
e as suas crianças de carrinho.

Água soberba e manchada de sexo.

Negro, negro sensual de mornas e coladeiras
não subas acima do passeio.
Não me invadas o corpo,
não me molhes as noites mal dormidas.

E o homem no chão afeiçoa
a pequena pedra
ao mar seco e saudoso da sua transumância,
às entranhas da terra que não é a sua.
Só o coração simples lhe pede
uma sede de água.

Ou de cerveja.


Armando Silva Carvalho, Lisboas