Tempo, subitamente solto...



em Lisboa. Fim de tarde. 29 de Setembro de 2005



Tempo, subitamente solto pelas ruas e pelos dias,
como a onda de uma tempestade a arrastar o mundo,
mostra-me o quanto te amei antes de te conhecer.
eram os teus olhos, labirintos de água, terra, fogo, ar,
que eu amava, quando imaginava que amava, era a tua
tua voz que dizia as palavras da vida. era o teu
                                                           rosto,
era a tua pele, antes de te conhecer, existia
                                                nas árvores
nos montes e nas nuvens que olhava ao fim da tarde.
muito longe de mim, dentro de mim, eras tu a claridade.


José Luís Peixoto







SETEMBRE



roses
Victoria Josephson



Aquella primavera ja és lluny per no tornar;
fugí batent ses ales en la claror xalesa.
De sos daurats ensomnis, una tristesa en resta,
i de ses flors tan belles, ni una en va fruitar.

Ara, que com una ombra l’estiu declina ja
i es va emboirant de llàgrimes sa lluminosa festa,
no sents pertot difondre’s, ànima meva, aquesta
sentor de flor marcida qui en l’aire se desfà?

Potser l’abril, d’enfora, l’últim adéu t’envia.
El seu record perfuma l’estiu en sa agonia,
encomanant als aires un mal d’enyorament.

Somriuen en les postes diafanitats llunyanes.
Amb una delicada tristesa de germanes,
les roses de setembre s’esfullen lentament.


Miquel Ferrà, A mig camí, 1926.







Adeus



Auf Wiedersehen
Willi Schnekenburger



É um adeus...
Não vale a pena sofismar a hora!
É tarde nos meus olhos e nos teus...
Agora,
O remédio é partir discretamente,
Sem palavras,
Sem lágrimas,
Sem gestos.
De que servem lamentos e protestos
Contra o destino?
Cego assassino
A que nenhum poder
Limita a crueldade,
Só o pode vencer a humanidade
Da nossa lucidez desencantada.
Antes da iniquidade
Consumada,
Um poema de líquido pudor,
Um sorriso de amor,
E mais nada.


Miguel Torga







Je ne suis seulement amoureux de Marie



cirque
Chagall



Je ne suis seulement amoureux de Marie,
Anne me tient aussi dans les liens d'Amour,
Ore l'une me plaît, ore l'autre à son tour :
Ainsi Tibulle aimait Némésis, et Délie.

On me dira tantôt que c'est une folie
D'en aimer, inconstant, deux ou trois en un jour,
Voire, et qu'il faudrait bien un homme de séjour,
Pour, gaillard, satisfaire à une seule amie.

Je réponds à cela, que je suis amoureux,
Et non pas jouissant de ce bien doucereux,
Que tout amant souhaite avoir à sa commande.

Quant à moi, seulement je leur baise la main,
Les yeux, le front, le col, les lèvres et le sein,
Et rien que ces biens-là d'elles je ne demande.


Pierre de Ronsard, Second livre des Amours







LÁGRIMAS



Setembro de 2005




Ela chorava muito e muito, aos cantos,
Frenética, com gestos desabridos;
Nos cabelos, em ânsias desprendidos,
Brilhavam como pérolas os prantos.

Ele, o amante, sereno como os santos,
Deitado no sofá, pés aquecidos,
Ao sentir-lhe os soluços consumidos,
Sorria-se cantando alegres cantos.

E dizia-lhe então, de olhos enxutos;
- "Tu pareces nascida de rajada,
"Tens despeitos raivosos, resolutos;

"Chora, chora, mulher arrenegada;
"Lacrimeja por esses aquedutos...
"Quero um banho tomar d’ água salgada".



Cesário Verde, O Livro de Cesário Verde







A fome


figure in a landscape
Francis Bacon



Aqui, onde a mão não
alcança o interruptor da vida, aqui
só brilha a solidão.
Desfazem-se as lembranças contra os vidros.

Aqui, onde a brancura
dum lenço é a brancura do infortúnio,

aqui a solidão
não brilha, apenas
se estorce.
A fome fala através das feridas.


Luís Miguel Nava, Vulcão







Essa velha ciência, a de esperar,...


The collection of field note-books by Orlando Ribeiro
Duarte Belo, daqui



Essa velha ciência, a de esperar, escreve-la
em cadernos retirados a cada viagem. Neles
anotaste os movimentos do mundo, o balanço
do mar. São só velhos, os cadernos; ainda

escreves à mão, ainda respiras por ele,
ciência antiga - onde a conservas? Linha
a linha as viagens vão passando por eles como
um mapa: aqui as ilhas, ali pequenos continentes,

provas de que o mundo não acaba à tua porta
quando o jardim desaparece entre os granitos.
Levantas a voz uma vez por outra, mas não é

isso que te interessa. Gostavas apenas que
os cadernos ficassem, gravados de ti e de quem amas,
guardados em gavetas, guardando o mundo.


Francisco José Viegas, O Puro e o Impuro







Et un sourire


rose sourire



La nuit n'est jamais complète
Il y a toujours puisque je le dis
Puisque je l'affirme
Au bout du chagrin une fenêtre ouverte
Une fenêtre éclairée
Il y a toujours un rêve qui veille
Désir à combler faim à satisfaire
Un coeur généreux
Une main tendue une main ouverte
Des yeux attentifs
Une vie la vie à se partager.


Paul Eluard, Derniers poèmes d'amour


hoje - também (em especial !) por ontem - para ti, Manuela, esta rose-sourire.







POESIA FACILE



Marlene Kremers
Marlene Kremers




Pace non cerco, guerra non sopporto
Tranquillo e solo vo pel mondo in sogno
Pieno di canti soffocati. Agogno
La nebbia ed il silenzio in un gran porto.

In un gran porto pien di vele lievi
Pronte a salpar per l'orizzonte azzurro
Dolci ondulando, mentre che il sussurro
Del vento passa con accordi brevi.

E quegli accordi il vento se li porta
Lontani sopra il mare sconosciuto.
Sogno. La vita è triste ed io son solo

O quando, o quando in un mattino ardente
L'anima mia si sveglierà nel sole
Nel sole eterno, libera e fremente.


Dino Campana (1885-1932)



                    POESIA FÁCIL


                    Paz não busco, guerra não suporto
                    Tranquilo e só vou pelo mundo em sonho
                    Cheio de cantos sufocados. Apeteço
                    A névoa e o silêncio num grande porto.


                    Num grande porto cheio de velas leves
                    Prestes a zarpar para o horizonte azul
                    Doces ondulando, enquanto o sussurro
                    Do vento passa com acordes breves.


                    E aqueles acordes o vento os leva
                    Distantes sobre o mar desconhecido.
                    Sonho. A vida é triste e eu estou só.


                    Oh quando oh quando numa manhã ardente
                    A minha alma despertará no sol
                    No sol eterno, livre e fremente.


                    Dino Campana, in Dez Poetas Italianos Contemporâneos,
                    Selecção, tradução e notas de Albano Martins




Abraço grato a Luca Gautero






Il n'y a pas d'amour heureux



17 de Setembro de 2005




Rien n'est jamais acquis à l'homme, ni sa force
Ni sa faiblesse, ni son coeur. Et quand il croit
Ouvrir ses bras, son ombre est celle d'une croix
Et quand il croit serrer son bonheur, il le broie
Sa vie est un étrange et douloureux divorce
             Il n'y a pas d'amour heureux

Sa vie, elle ressemble à ces soldats sans armes
Qu'on avait habillés pour un autre destin
A quoi peut leur servir de se lever matin
Eux qu'on retrouve au soir désoeuvrés incertains
Dites ces mots " Ma vie " et retenez vos larmes
             Il n'y a pas d'amour heureux

Mon bel amour, mon cher amour, ma déchirure
Je te porte dans moi comme un oiseau blessé
Et ceux-là sans savoir les mots que j'ai tressés
Et qui, pour tes grands yeux, tout aussitôt moururent
             Il n'y a pas d'amour heureux.

Le temps d'apprendre à vivre il est déjà trop tard
Que pleurent dans la nuit nos coeurs à l'unisson
Ce qu'il faut de malheur pour la moindre chanson
Ce qu'il faut de regrets pour payer un frisson
Ce qu'il faut de sanglots pour un air de guitare
             Il n'y a pas d'amour heureux

Il n'y a pas d'amour qui ne soit à douleur
Il n'y a pas d'amour dont on ne soit meurtri
Et pas plus que de toi l'amour de la patrie
Il n'y a pas d'amour qui ne vive de pleurs

             Il n'y a pas d'amour heureux
             Mais c'est notre amour à tous deux


Louis Aragon, La Diane française







Desligando a TV







A esta hora as anémonas nadam evitando o lodo
e Jesus Cristo está ainda sentado à direita de Deus Pai        É a ele
que me dirijo: para que
evite a poluição das águas;
acenda a luz das auto-estradas;
faça admitir na Guarda Nacional indivíduos capazes;
fiscalize devidamente os empréstimos externos;
esteja ao lado dos camponeses e operários;
mantenha a nossa cidade limpa;
acabe de vez com a inflação e o contrabando;
não permita lock-outs;
não se alheie das graves dificuldades do Serviço Nacional de Saúde;
atenda as preces das mães solteiras;
não deixe continuar nesta situação o nosso único Zoo;
dê coragem aos que julgam que já não há nada a fazer;
tire da cabeça dos nossos governantes a ideia maluca de mandarem
                                                       [construir uma central nuclear;
impeça o desvio dos nossos aviões;
dê um empurrãozinho na Habituação Social;
dê também uma olhadela pela Secretaria de Estado da Cultura;
ajude o mais possível nas nossas colheitas,
procure a maneira de actualizar as pensões de reforma e invalidez;
termine com as pequenas e grandes invejas dos nossos intelectuais;
volte a pôr a Feira do Livro na Avenida da Liberdade;
tente que cada um de nós ame mais o próximo ou
se não for possível que ao menos façamos todos férias repartidas


Joaquim Pessoa, Amor Combate







What Lips My Lips Have Kissed, And Where, And Why



winter tree
Lois Barker



What lips my lips have kissed, and where, and why,
I have forgotten, and what arms have lain
Under my head till morning; but the rain
Is full of ghosts tonight, that tap and sigh
Upon the glass and listen for reply,
And in my heart there stirs a quiet pain
For unremembered lads that not again
Will turn to me at midnight with a cry.
Thus in winter stands the lonely tree,
Nor knows what birds have vanished one by one,
Yet knows its boughs more silent than before:
I cannot say what loves have come and gone,
I only know that summer sang in me
A little while, that in me sings no more.


Edna St. Vincent Millay







PÉGASO



Pégase captif
Odilon Redon


À saída do estádio
pressentimos na brisa
a chegada dos signos da noite

Indeciso, o cavalo
transpõe o fosso do horizonte,
sob a lua e um alto
expoente de pó

Inverte-se o casco percussor
à beira da fonte do Hélicon,
e o cavalo grego
deita-se para morrer

Um frémito distende-lhe as asas;
no olhar anterior ao mito,
aflui agora
a mais pura estância
das lágrimas.


Sebastião Alba, A Noite Dividida







CHILE - 11 de Setembro de 1973


Chile: 12 September 1973
Arnd Schultheiss, daqui





LAS MASACRES


Pero entonces la sangre fue escondida
detrás de las raíces, fue lavada
y negada
(fue tan lejos), la lluvia del Sur la borró
            de la tierra
(tan lejos fue), el salitre la devoró en la
            pampa:
y la muerte del pueblo fue como siempre
            ha sido:
como si no muriera nadie, nada,
como si fueran piedras las que caen
sobre la tierra, o agua sobre el agua.

            De Norte a Sur, adonde trituraron
            o quemaron los muertos,
            fueron en las tinieblas sepultados,
            o en la noche quemados en silencio,
            acumulados en un pique
            o escupidos al mar sus huesos:
            nadie sabe dónde están ahora,
            no tienen tumba, están dispersos
            en las raíces de la patria
            sus martirizados dedos:
            sus fusilados corazones:
            la sonrisa de los chilenos:
            los valerosos de la pampa:
            los capitanes del silencio.

            Nadie sabe dónde enterraron
            los asesinos estos cuerpos,
            pero ellos saldrán de la tierra
            a cobrar la sangre caída
            en la resurrección del pueblo.

            En medio de la Plaza fue este crimen.

            No escondió el matorral la sangre
                        pura
            del pueblo, ni la tragó la arena de la
                        pampa.

            Nadie escondió este crimen.

            Este crimen fue en medio de la Patria.


Pablo Neruda, Canto General







NOCTURNAS PORTAS

versehlossene Türen
Lilo Kater



Portas, imensas e nocturnas portas, quando o que desejamos é
um rasgão luminoso.


Mário Rui de Oliveira, O Vento de Noite






sub-soneto-crítico



Simultaneous Contrasts
Sonia Delaunay



paraíso não há
nem para riso
nem país para isso
nem para brisas.

ao vento o rosto
revela-se utopia
nem de noite
nem de dia.

só a lúdica crise
se revolta na onda
que leva a vela.

eles SE tomam
a sério
no se.


E. M. de Melo e Castro







SER LUZ



7 de Setembro de 2005



Queria ser luz para poder sentir
a tua alma sôfrega bebê-la...
Queria ser luz para poder dormir
vibrando e ardendo como aquela estrela...

Se eu fosse luz iria descobrir
mais oceano ainda a cada vela;
como os olhos das águias a fulgir
seguiria nas noites de procela...

Ser luz para doirar toda a miséria,
talhar em jóias as pedras dos caminhos,
florir as almas, acordar os ninhos...

Quando beijo a chorar a noite etérea
do teu olhar, amor, a minha cruz
é esta sede imensa de ser luz!


António Patrício, Poesia Completa







CUÉNTAMELO OTRA VEZ



the lovers
Picasso



Cuéntamelo otra vez: es tan hermoso
que no me canso nunca de escucharlo.
Repíteme otra vez que la pareja del cuento
fue feliz hasta la muerte,que ella no le fue infiel,
que a él ni siquierase le ocurrió engañarla.
Y no te olvides de que, a pesar del tiempo y los problemas,
se seguían besando cada noche.
Cuéntamelo mil veces, por favor.
Es la historia más bella que conozco.


Amalia Bautista



                             Conta-mo outra vez


                             Conta-mo outra vez: é tão bonito
                             que não me canso nunca de escutá-lo.
                             Repete-me outra vez que o par
                             do conto foi feliz até à morte.
                             Que ela não lhe foi infiel, que a ele nem sequer
                             lhe ocorreu enganá-la. E não te esqueças
                             de que, apesar do tempo e dos problemas,
                             continuaram beijando-se cada noite.
                             Conta-mo mil vezes por favor:
                             é a história mais bela que conheço.


                             Amalia Bautista. Trad.: Jorge Sousa Braga







Pára-me de repente o pensamento



fractal
Fractal



Pára-me de repente o pensamento
Como que de repente refreado
Na doida correria em que levado
Ia em busca da paz do esquecimento

Pára surpreso, escrutador, atento,
Como pára um cavalo alucinado
Ante um abismo súbito rasgado.
Pára e fica, e demora-se um momento.

Pára e fica, na doida correria.
Pára à beira do abismo, e se demora.
E mergulha na noite escura e fria

Um olhar de aço, que essa noite explora.
Mas a espora da dor seu flanco estria,
E ele galga e prossegue sob a espora...


Ângelo de Lima , In Rosa do Mundo
2001 Poemas para o Futuro








Nos olhos de Isa




Elisabetta Rogai



Nos olhos de Isa a chuva grita e a noite
Acende fogueiras.

Os meus olhos param. Nos olhos de Isa.

Oh, nos olhos de Isa espreguiça-se a madrugada
E o vento acorda para ajudar os pássaros a voar
E as árvores a acenar-lhes uma bandeira de folhas, uma tristeza verde.

Nos olhos de Isa.

Nos olhos de Isa a manhã explode num inferno de estrelas,
Num clarão de silêncio, em estilhaços de rosas, pétalas de sombra.

Nos olhos de Isa os poetas vagueiam num bosque de mel
Onde as abelhas constroem a tarde
Desesperadamente.
Nos olhos de Isa ninguém repara na minha solidão.


Joaquim Pessoa, Nos Olhos de Isa







PEQUENA ELEGIA DE SETEMBRO



Não sei como vieste,
mas deve haver um caminho
para regressar da morte.

Estás sentada no jardim,
as mãos no regaço cheias de doçura,
os olhos pousados nas últimas rosas
dos grandes e calmos dias de setembro.

Que música escutas tão atentamente
que não dás por mim?
Que bosque, ou rio, ou mar?
Ou é dentro de ti
que tudo canta ainda?

Queria falar contigo,
dizer-te apenas que estou aqui,
mas tenho medo,
medo que toda a música cesse
e tu não possas mais olhar as rosas.
Medo de quebrar o fio
com que teces os dias sem memória.

Com que palavras
ou beijos ou lágrimas
se acordam os mortos sem os ferir,
sem os trazer a esta espuma negra
onde corpos e corpos se repetem,
parcimoniosamente, no meio de sombras?

Deixa-te estar assim,
ó cheia de doçura,
sentada, olhando as rosas,
e tão alheia
que nem dás por mim.


Eugénio de Andrade, Coração do Dia