O espírito da matéria



Mosteiro da Batalha



Também as catedrais são sinfonias:
Rege a massa coral da arquitectura
a divinização da partitura;
e ambas se irmanam por analogias!

O alegro, o adágio, o andante, a tessitura,
o arco, o fuste, o florão... Alegorias
que, pela execução das harmonias,
Timbram exatas, no esplendor da altura!

E, pelos olhos, as orquestras se ouvem.
E, pelo ouvido, a torre se levanta,
para que os sonhos da matéria louvem!

E na sua amplitude sacrossanta,
a alma de um Brunelleschi ou de um Beethoven,
fulge na pedra, quando a pedra canta!


Martins Fontes







EXPLICAÇÃO DA ESPERA



29 de Julho de 2005



Quando me sentarei ao sol
Despido
Líquen vivendo
Da inclinação dos ramos?

Quando crescerei como nuvem
Mão leve sobre a fronte
Da doença?

Quando repousarei
Ausente sem sofrer
Qualquer ausência?


Daniel Faria, Poesia







FRENTE AL MAR



31 de Maio de 2005




Oh mar, enorme mar, corazón fiero
De ritmo desigual, corazón malo,
Yo soy más blanda que ese pobre palo
Que se pudre en tus ondas prisionero.

Oh mar, dame tu cólera tremenda,
Yo me pasé la vida perdonando,
Porque entendía, mar, yo me fui dando:
«Piedad, piedad para el que más ofenda».

Vulgaridad, vulgaridad me acosa.
Ah, me han comprado la ciudad y el hombre.
Hazme tener tu cólera sin nombre:
Ya me fatiga esta misión de rosa.

¿Ves al vulgar? Ese vulgar me apena,
Me falta el aire y donde falta quedo,
Quisiera no entender, pero no puedo:
Es la vulgaridad que me envenena.

Me empobrecí porque entender abruma,
Me empobrecí porque entender sofoca,
Bendecida la fuerza de la roca!
Yo tengo el corazón como la espuma.

Mar, yo soñaba ser como tú eres,
Allá en las tardes que la vida mía
Bajo las horas cálidas se abría...
Ah, yo soñaba ser como tú eres.

Mírame aquí, pequeña, miserable,
Todo dolor me vence, todo sueño;
Mar, dame, dame el inefable empeño
De tornarme soberbia, inalcanzable.

Dame tu sal, tu yodo, tu fiereza.
Aire de mar!... Oh, tempestad! Oh enojo!
Desdichada de mí, soy un abrojo,
Y muero, mar, sucumbo en mi pobreza.

Y el alma mía es como el mar, es eso,
Ah, la ciudad la pudre y la equivoca;
Pequeña vida que dolor provoca,
Que pueda libertarme de su peso!

Vuele mi empeño, mi esperanza vuele...
La vida mía debió ser horrible,
Debió ser una arteria incontenible
Y apenas es cicatriz que siempre duele.


Alfonsina Storni, Irremediablemente








La signora dell'ultima volta



Hurricane Emily and Luna
Foto: Nasa




L'ultima volta che la vide non sapeva che era l'ul-
tima volta che la vedeva.
Perchè?
Perchè queste cose non si sanno mai.
Allora non fu gentile quell'ultima volta?
Sì, ma non a sufficienza per l'eternità.


Vivian Lamarque







A CARPA



La Carpa
Marina Obo




Sobre uma colagem de Marina Obo

Fundolho escamado superficiando olho prà carpa.
Vem do fundo do olho que foi ao fundo.
Movindo das profundas move manualetas,num abr'olhos
de peixespanto.
Dizque tacteia águas que estão na água,
trevas que estão na terra. Podeserque.
Carpabricolada,reactiva nossa gula das jóias,
tão segura da sua completude está,
tão cor é na desluz que a encerra (escrínio).
Nada nadando,a carpa vem ao de cima
devolver o olhar com que a vimos.
Olho na carpa de olhos em nós.Por ela e por nós.
Peixespelho,troço de maravilhoso,
atenção!,
a carpa vai fechar a luz.
Fechou.Agora, no escuro, a carpa travestindo-se
para novos feéricos espectáculos pela mão de Marina Obo.
Oh, as Carpas amestradas!


Alexandre O'Neill, Poesias Completas


Imagem daqui








Summertime



Summertime, 1943
Edward Hopper



Olho a sua boca. Tanto
que vem o punhal da luz
levar-me os olhos.
O carvão, a cinza dos
meus olhos. Os seus.

A sua boca, o sulco
onde me pergunta e eu
respondo. A morrer,
a olhar anavalhado
o seu brilho bravio.

Sons de sirenes, uivos,
estrondos, desabamentos,
ravinas donde rompe
o amor. A sua boca.


Joaquim Manuel Magalhães, Uma Exposição







O funcionário cansado



Liers
Liers



A noite trocou-me os sonhos e as mãos
dispersou-me os amigos
tenho o coração confundido e a rua é estreita
estreita em cada passo
as casas engolem-nos
sumimo-nos
estou num quarto só num quarto só
com os sonhos trocados
com toda a vida às avessas a arder num quarto só

Sou um funcionário apagado
um funcionário triste
a minha alma não acompanha a minha mão
Débito e Crédito Débito e Crédito
a minha alma não dança com os números
tento escondê-la envergonhado
o chefe apanhou-me com o olho lírico na gaiola do quintal em frente
e debitou-me na minha conta de empregado
Sou um funcionário cansado de um dia exemplar
Porque não me sinto orgulhoso de ter cumprido o meu dever?
Porque me sinto irremediavelmente perdido no meu cansaço?

Soletro velhas palavras generosas
Flor rapariga amigo menino
irmão beijo namorada
mãe estrela música.
São as palavras cruzadas do meu sonho
palavras soterradas na prisão da minha vida
isso todas as noites do mundo uma noite só cumprida
num quarto só


António Ramos Rosa, Viagem Através de Uma Nebulosa







OFERENDA



Bjorn Rorslett
Bjorn Rorslett



São rosas desfolhadas pela noite
as oferendas que faço ao meu amor.
São raivas soterradas as palavras
que segredo velando o meu amor.
Os gestos são de medo, os do afago.
E a secreta angústia do desejo
a porta que me fecha para a vida.

São rosas desfolhadas meu amor.
São raivas soterradas meu amor.

Amor de carne,
pasmo de sangue a revelar-me a ferida
na luta de encontrar para perder,
furor que me devolve corpo a corpo
ao espaço onde não ter é ter chegado,
de olhos fendidos e com dedos ocos,
em frente ao sonho sem saber sonhar.

Em ti, amor, procuro
e em ti, abraço o que me foge
pois bem sei, meu amor, amante amor
que ao nos amarmos nós queremos ser
de nós o que em vão ser nos destruísse.
E bem sei, bem sei, fêmea de mim,
que num e noutro só sabemos ver
o que de nós em nós não tem lugar.

E és para mim, bem sei, todo o mistério
e eu sou a busca dele que te procuro
pelo caminho que o teu corpo afirma.

Amor,
desgosto só de me não seres
que eu guardo e quero e peço
neste vão abraçar-te solitário
pra sem mim ir sugando a tua carne
pra sem ti ir fingindo a minha vida
- as oferendas que tive e desfolhei
- as rosas derramadas pela noite.


Hélder Macedo







S (esse)







Direi de meu tempo que havia um S
havia uma sombra e um silêncio
havia um S de sigla e de suspeita
com suas seitas e seus sicários.

Não sei se signo não sei se sina
não sei se simplesmente sujo.
Ou só servil. Ou só sevícia.

Havia um S de Saturno
havia um susto
havia um S de soturno
sobre um S de sol.

De meu tempo direi
que havia um S
de sepulcro.

Sentinela. Sentinelas.

Ou talvez selva. Talvez serpente.
S de sebo e de sebenta: seco seco.

E também senão. E também senil.

De meu tempo direi
que havia um S
sem sentido.

E também Setembro. E também solstício.
Saga e safra.
Ou talvez semente. Ou talvez segredo.

Havia um S de sal e sílex
havia um silvo
Havia uma sílaba ciciada.

E também o sonho: entre suar e ser.
(Como um soluço como um soluço.)

De meu tempo direi
que havia um S
de sol e som.
Havia Setembro e um assobio
contra um S de sombra e de silêncio.


Manuel Alegre, 18 de Janeiro de 74







Os olhos do poeta

Galerie Agon





O poeta tem olhos de água para reflectirem todas as cores do mundo,
e as formas e as proporções exactas, mesmo das coisas que os sábios desconhecem.
Em seu olhar estão as distâncias sem mistério que há entre as estrelas,
e estão as estrelas luzindo na penumbra dos bairros de miséria,
com as silhuetas escuras dos meninos vadios esguedelhados ao vento.
Em seu olhar estão as neves eternas dos Himalaias vencidos
e as rugas maceradas das mães que perderam os filhos na luta entre as pátrias
e o movimento ululante das cidades marítimas onde se falam todas as línguas da Terra
e o gesto desolado dos homens que voltam ao lar com as mãos vazias e calejadas
e a luz do deserto incandescente e trémula, e os gelos dos pólos, brancos, brancos,
e a sombra das pálpebras sobre o rosto das noivas que não noivaram
e os tesouros dos oceanos desvendados maravilhando como contos-de-fada à hora da
infância
e os trapos negros das mulheres dos pescadores esvoaçando como bandeiras aflitas
e correndo pela costa de mãos jogadas pró mar amaldiçoando a tempestade:
- todas as cores, todas as formas do mundo se agitam e gritam nos olhos do poeta.
Do seu olhar, que é um farol erguido no alto de um promontório,
sai uma estrela voando nas trevas
tocando de esperança o coração dos homens de todas as latitudes.
E os dias claros, inundados de vida, perdem o brilho nos olhos do poeta
que escreve poemas de revolta com tinta de sol na noite de angústia que pesa no mundo.


Manuel da Fonseca, Poemas







Último Jardim



Ralf Greiner
Ralf Greiner



Tardes no meu jardim
tão lúcidas, quietas,
quase inquietas,
com pequeninos sóis
em cada pétala molhada,
com sombras fugidias...
(Tal os dias
sumindo-se um a um...)

E as canções
que não foram cantadas?
E as rosas decepadas
pelo simum?
E os riscos na parede?
E a sede
numa taça vazia?

E a noite que começa
fria, fria...!


Saúl Dias, Vislumbre







QUADRO



14 de Julho de 2005



tanto oiro na tarde
escorrendo do poente

as silhuetas das árvores
são fímbrias de poemas

e quantos horizontes
me esqueceram?


Glória de Sant'Anna, Algures no Tempo







Petit poème des poissons de la mer



13 de Julho de 2005



Je me suis penché sur la mer
Pour communiquer mon message
Aux poissons:
«Voilà ce que je cherche et que je veux savoir.»

Les petits poissons argentés
Du fond des mers sont remontés
Répondre à ce que je voulais.

La réponse des petits poissons était:
«Nous ne pouvons pas vous le dire
Monsieur
PARCE QUE»
Là la mer les a arrêtés.

Alors j'ai écarté la mer
Pour les mieux fixer au visage
Et leur ai redit mon message:
«Vaut-il mieux être que d'obéir?»

Je le leur redis une fois, je leur dis une seconde
Mais j'eus beau crier à la ronde
Ils n'ont pas voulu entendre raison!

Je pris une bouilloire neuve
Excellente pour cette épreuve
Où la mer allait obéir.

Mon coeur fit hamp, mon coeur fit hump
Pendant que j'actionnais la pompe
À eau douce, pour les punir.

Un, qui mit la tête dehors
Me dit: «Les petits poissons sont tous morts.»

«C'est pour voir si tu les réveilles,
Lui criai-je en plein dans l'oreille,
Va rejoindre le fond de la mer.»

Dodu Mafflu haussa la voix jusqu'à hurler en déclamant ces trois derniers vers,
et Alice pensa avec un frisson: «Pour rien au monde je n'aurai voulu être ce messager!»

Celui qui n'est pas ne sait pas
L'obéissant ne souffre pas.

C'est à celui qui est à savoir
Pourquoi l'obéissance entière
Est ce qui n'a jamais souffert

Lorsque l'être est ce qui s'effrite
Comme la masse de la mer.

Jamais plus tu ne seras quitte,
Ils vont au but et tu t'agites.
Ton destin est le plus amer.

Les poissons de la mer sont morts
Parce qu'ils ont préféré à être
D'aller au but sans rien connaître
De ce que tu appelles obéir.

Dieu seul est ce qui n'obéit pas,
Tous les autres êtres ne sont pas
Encore, et ils souffrent.

Ils souffrent ni vivants ni morts.
Pourquoi?

Mais enfin les obéissants vivent,
On ne peut pas dire qu'ils ne sont pas.

Ils vivent et n'existent pas.
Pourquoi?

Pourquoi? Il faut faire tomber la porte
Qui sépare l'Être d'obéir!

L'Être est celui qui s'imagine être
Être assez pour se dispenser
D'apprendre ce que veut la mer...

Mais tout petit poisson le sait!
Il y eut une longue pause.
«Est-ce là tout? demanda Alice timidement.»


Antonin Artaud, «L'Arve et l'Aume: tentative
anti-grammaticale contre Lewis Carroll»,
Oeuvres Complètes







Cada árvore é um ser para ser em nós



12 de Julho de 2005



Cada árvore é um ser para ser em nós
Para ver uma árvore não basta vê-la
a árvore é uma lenta reverência
uma presença reminiscente
uma habitação perdida
e encontrada
À sombra de uma árvore
o tempo já não é o tempo
mas a magia de um instante que começa sem fim
a árvore apazigua-nos com a sua atmosfera de folhas
e de sombras interiores
nós habitamos a árvore com a nossa respiração
com a árvore nós partilhamos o mundo com os deuses


António Ramos Rosa, Cada árvore é um ser para ser em nós







As coisas melhores



Klaus Oppermann
Klaus Oppermann



As coisas melhores são feitas no ar,
andar nas nuvens, devanear,
voar, sonhar, falar no ar,
fazer castelos no ar
e ir lá para dentro morar
ou então estar em qualquer sítio só a estar,
a respirar a respirar,
o coração a pulsar,
o sangue a sangrar,
a imaginação a imaginar,
os olhos a olhar.

(embora sem ver)
e ficar muito quietinho a ser,
os tecidos a tecer,
os cabelos a crescer.
E isto tudo a saber
que isto tudo está a acontecer!
As coisas melhores são de ar
só é preciso abrir os olhos e olhar,
basta respirar!


Manuel António Pina







Para a Sílvia porque...***



Hawaii lac et bulle de lave



LA VITA DELL'OMO


Nove mesi a la puzza: poi in fassciola
Tra sbasciucchi, lattime e llagrimoni:
Poi p'er laccio, in ner crino, e in vesticciola,
Cor torcolo e l'imbraghe pe ccarzoni.

Poi comincia er tormento de la scola,
L'abbeccè, le frustate, li ggeloni,
La rosalìa, la cacca a la ssediola,
E un po' de scarlattina e vvormijjoni.

Poi viè ll'arte, er diggiuno, la fatica,
La piggione, le carcere, er governo,
Lo spedale, li debbiti, la fica,

Er zol d'istate, la neve d'inverno...
E pper urtimo, Iddio sce bbenedica,
Viè la morte, e ffinissce co l'inferno.

Roma, 18 gennaio 1833

Giuseppe Gioachino Belli


ler e ouvir aqui



A VIDA DO HOMEM

Nove meses no fedor, depois nas faixas,
por entre crostas, beijocas, lagrimonas,
depois à trela, na andadeira, em camisinha,
pára turras na testa, cueiros por calções.

Depois começa o tormento da escola,
o á bê cê, a vergasta e as frieiras,
a rubéola, a caca na cagadeira
e um pouco de escarlatina e de bexigas.

Depois o ofício, o jejum, a trabalheira,
a pensão a pagar, as prisões, o governo,
o hospital, as dívidas, a crica,

o sol no Verão, a neve no Inverno…
E por último – e que Deus nos abençoe –
vem a morte, e acaba no inferno.


Giuseppe Gioachino Belli. Trad. Alexandre O’Neill


Ouvir aqui, voz de Luís Gaspar


*** ... sabe o porquê!
beijo + beijo








bagagem


14-6-2005








O sol no castelo de Almourol

7 de Julho de 2005 - Castelo de Almourol





Vi poisar o Sol
no castelo de Almourol.
E inventei uma história
com sombras e clarões,
príncipes e ladrões,
fadas e fadistas,
espadas e turistas,
reis e rainhas,
rios e tainhas,
água e aguardente
de medronho
a correr
no rio
do sonho.
Tudo isto,
quando o Sol
se pôs
no Castelo de Almourol,
que rima com rouxinol,
que rima com Sol.


Matilde Rosa Araújo







Orfeu do avesso



Andreas Wagner
Andreas Wagner



De pé sobre o abismo
e não morri:

Canto gregoriano
muito limpo
não me chegou:
o fim
Catedral
sobre o risco,
sobre um azul tão grande
que afundar-me podia
Ao fundo do mais fundo
mergulhei
e não morri:
amei


Ana Luísa Amaral, Epopeias







Vergüenza



Landscape with distant rive and bay
Turner



Si tú me miras, yo me vuelvo hermosa
como la hierba a que bajó el rocío,
y desconocerán mi faz gloriosa
las altas cañas cuando baje al río.

Tengo vergüenza de mi boca triste
de mi voz rota y mis rodillas rudas;
ahora que me miraste y que viniste,
me encontré pobre y me palpé desnuda.

Ninguna piedra en el camino hallaste
más desnuda de luz la alborada
que esta mujer a la que levantaste,
porque oíste su canto, la mirada.

Yo callaré para que no conozcan
mi dicha los que pasan por el llano,
en el fulgor que da a mi frente tosca
y en la tremolación que hay en mi mano...

Es noche y baja a la hierba el rocío;
mírame largo y habla con ternura,
que ya mañana al descender al río
la que besaste llevará hermosura!


Gabriela Mistral







À NOITE



C.Y.Soare



Quando o Sol se vai e é chegada a lua
o pai corre fechos, persianas,
vai trancar o portão que dá p'rà rua.
Depois eu adormeço, mas os meus sonhos
não cabem na casa e eu saio
para riscar a noite com um fio de luz,
cavalgar mistérios até de manhã.

À noite, uma simples brisa
escancara portas e janelas
e não há chave, fecho ou tranca
que encerre a porta larga dos meus sonhos.


Álvaro Magalhães, O Reino Perdido







LERAM-ME HOJE S. FRANCISCO DE ASSIS







Leram-me hoje S. Francisco de Assis.
Leram-me e pasmei.
Como é que um homem que gostava tanto das cousas
Nunca olhava para elas, não sabia o que elas eram?

Para que hei-de chamar minha irmã à água, se ela não é minha irmã?
Para a sentir melhor?
Sinto-a melhor bebendo-a do que chamando-lhe qualquer cousa -
Irmã, ou mãe, ou filha.
A água é a água e é bela por isso.
Se eu lhe chamar minha irmã,
Ao chamar-lhe minha irmã, vejo que o não é
E que se ela é a água o melhor é chamar-lhe água;
Ou, melhor ainda, não lhe chamar cousa nenhuma,
Mas bebê-la, senti-la nos pulsos, olhar para ela
E tudo isto sem nome nenhum.


Alberto Caeiro, Poesia







Em todos os jardins



Em todos os jardins hei-de florir,
Em todos beberei a lua cheia,
Quando enfim no meu fim eu possuir
Todas as praias onde o mar ondeia.

Um dia serei eu o mar e a areia,
A tudo quanto existe me hei-de unir,
E o meu sangue arrasta em cada veia
Esse abraço que um dia se há-de abrir.

Então receberei no meu desejo
Todo o fogo que habita na floresta
Conhecido por mim como num beijo.

Então serei o ritmo das paisagens,
A secreta abundância dessa festa
Que eu via prometida nas imagens.


Sophia de Mello Breyner Andresen