POEMA BREVE



Arndt Norbert
Arndt Norbert



Inda percorro os dias
e as noites sem sono

e o que perpassa é o sonho


Glória de Sant'Anna, Algures no Tempo



Conheci e aprendi a gostar de
Glória de Sant'Anna
em Fazendo Caminho.

Obrigada, L.








vai tão pequena a teia, que lamento



Gespinst
Klaus Ender


… sola est non territa virgo,
sed tamen erubuit


Ovídio, Metamorfoses, VI: 45-6



Vai tão pequena a teia, que lamento
ter perdido o meu tempo em outros jogos,
pois com talento e tempo poderia
abandonar a fria geometria
e desenhar figuras, tão reais
que nelas revelasse
a verdade maior da fantasia.
Um cisne, por exemplo, feito signo
do amor incendiário que conduz
deuses à terra, procurando gente;
uma nuvem ali, de onde cai chuva
ou luz, mas que simula
pedacinhos de sol, moedas de ouro;
cavalos, aves, gado, e um golfinho;
por baixo, em singular moldura,
o tortuoso corpo da serpente.
Mas, pequeno que sou, receio a inveja
da sociedade, ou de um poder mais alto,
que em mim veja rival ou parasita
e me transforme em bicho repelente;
preferias alguém menos ligeiro,
carne menos subtil, pele rosada,
forma de gente, não de bicho abjecto.
Sozinho agora, e solto, enquanto acaba
mãe-sol de riscar linhas no horizonte,
lamento que não saibas que se esconde
uma princesa em cada feia aranha,
mais bela e cintilante do que a lua;
depois recolho ao centro do meu verso
com esta reflexão modesta e triste:
de tudo quanto viste e mal ouviste,
em mim, do que mais gostas é da baba.


António Franco Alexandre, ARACNE








a praia é a mesma... o tempo passou...



Areia Branca - 2005
Areia Branca revisitada em 2005



... mas nós ainda cá estamos para te cantar (desafinadamente :-)


PARABÉNS A VOCÊ


beijões e abrações, Fernando Carlos








quando é doce fazer anos



Sofia MGAlmeida
Sofia Almeida



Beijão de parabéns, Sofia.












Canção



28-6-2005




Pus o meu sonho num navio
e o navio em cima do mar;
- depois, abri o mar com as mãos,
para o meu sonho naufragar.

Minhas mãos ainda estão molhadas
do azul das ondas entreabertas,
e a cor que escorre dos meus dedos
colore as areias desertas.

O vento vem vindo de longe,
a noite se curva de frio;
debaixo da água vai morrendo
meu sonho, dentro de um navio...

Choararei quanto for preciso,
para fazer com que o mar cresça,
e o meu navio chegue ao fundo
e o meu sonho desapareça.

Depois, tudo estará perfeito:
praia lisa, águas ordenadas,
meus olhos secos como pedras
e as minhas duas mãos quebradas.


Cecília Meireles, Viagem







ÚLTIMA CARTA DE VAN GOGH A THÉO


self portrait with bandaged ear and pipe
Van Gogh



nunca me preocupei em reproduzir exactamente
aquilo que vejo e observo
a cor serve para me exprimir théo: amarelo
terra azul corvo lilás sol branco pomar vermelho
arles
sulfurosas cores cintilanddo sob o mistério
das estrelas na profunda noite afundadas onde
me alimento de café absinto tabaco visões e
um pedaço de pão théo
que o padeiro teve a bondade de fiar

o mistral sopra mesmo quando não sopra
os pomares estão em flor
o mistral torna-se róseo nas copas das ameixeiras
arles continuou a arder quando tentei matar aquele
que viu a minha paleta tornar-se límpida
mas acabei por desferir um golpe contra mim mesmo
théo
cortei-me uma orelha e o mistral sopra agora
só de um lado do meu corpo os pomares estão em flor
e arles théo continua a arder sob a orelha cortada

por fim théo
em auvers voltei a cara para o sol
apontando o revólver ao peito senti o corpo
como um torrão de lama em fogo regressar ao início
num movimento de incendiado girassol


Al Berto, O Medo







Ce qui embellit le désert...



Andreas Biesenbach
Andreas Biesenbach


- Ce qui embellit le désert,
dit le petit prince,
c'est qu'il cache un puits quelque part...

Antoine de Saint-Exupéry, Le petit Prince





Cidade surpreendente

Dicionário da Pintura Universal II

Lendo e sonhando

Literatus

Mina Anguelova's page

Os Dias da Música

Risocordetejo







De algumas perguntas...








De algumas perguntas tememos o som e o desenlace
delas, noite adiante, resguardo nenhum.
Sabemo-las assim lentas, um cristal
mais afiado, um abandono mais duro.


Eduardo Pitta, **








Ich liebe meines Wesens Dunkelstunden



fractal
fractal



Ich liebe meines Wesens Dunkelstunden,
in welchen meine Sinne sich vertiefen;
in ihnen hab ich, wie in alten Briefen,
mein täglich Leben schon gelebt gefunden
und wie Legende weit und überwunden.

Aus ihnen kommt mir Wissen, daß ich Raum
zu einem zweiten zeitlos breiten Leben habe.
Und manchmal bin ich wie der Baum,
der, reif und rauschend, über einem Grabe
den Traum erfüllt, den der vergangne Knabe
(um den sich seine warmen Wurzeln drängen)
verlor in Traurigkeiten und Gesängen.


Rainer Maria Rilke, Die Gedichte



                        Amo as horas sombrias do meu ser
                        em que os meus sentidos se aprofundam;
                        nelas encontrei, como em velhas cartas,
                        o meu dia a dia já vivido,
                        ultrapassado e vasto como numa lenda.

                        Elas me ensinam que possuo espaço
                        p'ra uma intemporal Segunda vida.
                        E por vezes sou como a árvore
                        que, madura e rumorosa, sobre uma campa
                        cumpre o sonho que a criança de outrora
                        (abraçada por suas cálidas raízes)
                        perdeu em tristezas e canções.


                        Rainer Maria Rilke. Trad.: Ana Hatherly







A Vaidosa



Mina Anguelova - Frigidez
Mina Anguelova




Dizem que tu és pura como um lírio
E mais fria e insensível que o granito,
E que eu que passo aí por favorito
Vivo louco de dor e de martírio.

Contam que tens um modo altivo e sério,
Que és muito desdenhosa e presumida,
E que o maior prazer da tua vida,
Seria acompanhar-me ao cemitério.

Chamam-te a bela imperatriz das fátuas,
A déspota, a fatal, o figurino,
E afirmam que és um molde alabastrino,
E não tens coração como as estátuas.

E narram o cruel martirológio
Dos que são teus, ó corpo sem defeito,
E julgam que é monótono o teu peito
Como o bater cadente dum relógio.

Porém eu sei que tu, que como um ópio
Me matas, me desvairas e adormeces
És tão loira e doirada como as messes
E possuis muito amor... muito amor próprio.

Harpa
1874
Porto


Cesário Verde, O Livro de Cesário Verde


Mina, agradeço o carinho do envio :-)

Mina Anguelova aqui - aqui








ALEGORIA SEGUNDA



20 de Junho de 2005




De poetas e filósofos tu sabes,
sabes também por ti. Por isso eu digo:
esta pedra é vermelha, esta pedra é sangue.
Toca-lhe: saberás
como em segredo florescem as acácias
ao redor dos muros, como fluem
suas concêntricas artérias. Acaricia-as: tocas
a parte mais sensível de ti mesmo.


Dizias ontem que o verão ardia
nesta pedra. Nela
queimavas tuas mãos. Onde
as aqueces hoje? Eu digo:
o verão não morreu, esta pedra é o verão.

E tudo permanece. E tudo é teu.
Tu és o sangue, o verão e a pedra.


Albano Martins, Paralelo ao Vento







Rumor de água



20 de Junho de 2005



Rumor de água
na ribeira ou no tanque?

O tanque foi na infância
minha pureza refractada.
A ribeira secou no verão.

Rumor de água
no tempo e no coração.

Rumor de nada.


Carlos de Oliveira, Trabalho Poético







"o poema é aqui"


Tendresse
Chagall




– O poema é aqui,
quando levanto o olhar do papel
e deixo as minhas mãos tocarem-te,

quando sei sem rimas e sem metáforas que te amo


José Luís Peixoto








Para F.,


Para F., a fotografia da Serigrafia de Cruzeiro Seixas
Cruzeiro Seixas




com meu beijo (azulão :-)










C'est le temps



Günter Rolf




C’est le temps,
de se parler,
si encore on peut se parler,
et de se donner,
si encore on peut se donner quelque chose.
C’est le temps
et bientôt on restera
sans lui.


Alojz Ihan**








À TÍLIA


14 de Junho de 2005




Peregrino, senta debaixo da ramagem,
Descansa; eu prometo – sequer o sol selvagem
Aqui pode avançar. Porém os raios justos
Deverão as sombras aquietar nos arbustos.
Aqui sempre sopram brisas frescas do campo,
Rouxinóis e negras aves cantam seu canto.
Abelhas obreiras recolhem mel das flores
Perfumadas para brindar as mesas nobres.
E a todos os homens meu murmúrio sereno
Cobre facilmente de adocicado sono.
Maçãs não carrego, mas sou árvore farta
Das Hespérides no jardim, meu amo exorta.


Jan Kochanowski. Trad. Aleksandar Jovanovic
In Rosa do Mundo2001 Poemas para o Futuro







"pela coragem ou pela arte..."


Mosteiro da Batalha.




[...] Os homens, esses valem,
conforme os deuses concedem,
pela coragem ou pela arte...

Píndaro (séc. VI-V a.C.)







Carmen 7




Perguntas-me, Lésbia, quantos beijos me serão Sir Edward Poynter - Lesbia and her sparrow
suficientes e mais que suficientes.
Quantos os grãos inúmeros de areia líbica
que estão em Cirene produtora de lasarpício,
entre o oráculo ardente de Júpiter
e o sagrado sepulcro do velho Bato,
quantas as estrelas que, na noite silenciosa,
contemplam os amores furtivos dos homens
- tantos os beijos teus suficientes ao louco Catulo;
em tão grande número que os não possam contar os curiosos,
nem fazer-lhes feitiço os maldizentes.


Gaius Valerius Catullus. Trad.: Agostinho da Silva




Por esta preciosidade, o meu abraço grato para o Manuel.







Eugénio



Eugénio de Andrade (1923 - 2005)



SERÃO PALAVRAS SÓ...


Diremos prado bosque
primavera,
e tudo o que dissermos
é só para dizermos
que fomos jovens.

Diremos mãe amor
um barco,
e só diremos
que nada há
para levar ao coração.

Diremos terra ou mar
ou madressilva,
mas sem música no sangue
serão palavras só,
e só palavras, o que diremos.


Eugénio de Andrade, Mar de Setembro







a 13 de Junho fazem anos ***



Trono de Santo António junto à Basílica da Estrela. Pormenor



SANTO ANTÓNIO

Nasci exactamente no teu dia –
Treze de Junho, quente de alegria,
Citadino, bucólico e humano,
Onde até esses cravos de papel
Que têm uma bandeira em pé quebrado
Sabem rir...
Santo dia profano
Cuja luz sabe a mel
Sobre o chão de bom vinho derramado!

Santo António, és portanto
O meu santo,
Se bem que nunca me pegasses
Teu franciscano sentir,
Católico, apostólico e romano.

(Reflecti.
Os cravos de papel creio que são
mais propriamente, aqui,
Do dia de S. João...
Mas não vou escangalhar o que escrevi.
Que tem um poeta com a precisão?)

Adiante... Ia eu dizendo, Santo António,
Que tu és o meu santo sem o ser.
Por isso o és a valer,
Que é essa a santidade boa,
A que fugiu deveras ao demónio.
És o santo das raparigas,
És o santo de Lisboa,
És o santo do povo.
Tens uma auréola de cantigas,
E então
Quanto ao teu coração –
Está sempre aberto lá o vinho novo.


Dizem que foste um pregador insigne,
Um austero, mas de alma ardente e ansiosa,
Etcetera...
Mas qual de nós vai tomar isso à letra?
Que de hoje em diante quem o diz se digne
Deixar de dizer isso ou qualquer outra coisa.

Qual santo! Olham a árvore a olho nu
E não a vêem, de olhar só os ramos.
Chama-se a isto ser doutor
Ou investigador.

Qual Santo António! Tu és tu.
Tu és tu como nós te figuramos.

Valem mais que os sermões que deveras pregaste
As bilhas que talvez não concertaste.
Mais que a tua longínqua santidade
Que até já o Diabo perdoou,
Mais que o que houvesse, se houve, de verdade
No que – aos peixes ou não – a tua voz pregou,
Vale este sol das gerações antigas
Que acorda em nós ainda as semelhanças
Com quando a vida era só vida e instinto,
As cantigas,
Os rapazes e as raparigas,
As danças
E o vinho tinto.

Nós somos todos quem nos faz a história.
Nós somos todos quem nos quer o povo.
O verdadeiro título de glória,
Que nada em nossa vida dá ou traz
É haver sido tais quando aqui andámos,
Bons, justos naturais em singeleza,
Que os descendentes dos que nós amámos
Nos promovem a outros, como faz
Com a imaginação que há na certeza,
O amante a quem ama,
E o faz um velho amante sempre novo.
Assim o povo fez contigo
Nunca foi teu devoto: é teu amigo,
Ó eterno rapaz.

(Qual santo nem santeza!
Deita-te noutra cama!)
Santos, bem santos, nunca têm beleza.
Deus fez de ti um santo ou foi o Papa?...
Tira lá essa capa!
Deus fez-te santo! O Diabo, que é mais rico
Em fantasia, promoveu-te a manjerico.

És o que és para nós. O que tu foste
Em tua vida real por mal ou bem,
Que coisas, ou não-coisas se te devem
Com isso a estéril multidão arraste
Na nora de uns burros que puxam, quando escrevem,
Essa prolixa nulidade, a que se chama história,
Que foste tu, ou foi alguém,
Só Deus o sabe, e mais ninguém.

És pois quem nós queremos, és tal qual
O teu retrato, como está aqui,
Neste bilhete postal.
E parece-me até já que te vi.

És este, e este és tu, e o povo é teu –
O povo que não sabe onde é o céu,
E nesta hora em que vai alta a lua
Num plácido e legítimo recorte,
Atira risos naturais à morte,
E cheio de um prazer que mal é seu,
Em canteiros que andam enche a rua.


Sê sempre assim, nosso pagão encanto,
Sê sempre assim!
Deixa lá Roma entregue à intriga e ao latim,
Esquece a doutrina e os sermões.
De mal, nem tu nem nós merecíamos tanto.
Foste Fernando de Bulhões,
Foste Frei António –
Isso sim.
Porque demónio
É que foram pregar contigo em santo?


Fernando Pessoa, Poemas Dispersos




*** Fernando Pessoa, Santo António e Márcia Maia




sei que sentirá o cheiro do manjerico
assim como o calor do meu abraço.
PARABÉNS, AMIGA














Luís de Camões







49

"Mais ia por diante o monstro horrendo
Dizendo nossos fados, quando, alçado,
Lhe disse eu: — Quem és tu? que esse estupendo
Corpo, certo, me tem maravilhado!
A boca e os olhos negros retorcendo
E, dando um espantoso e grande brado,
Me respondeu, com voz pesada e amara,
Como quem da pergunta lhe pesara:


50

— "Eu sou aquele oculto e grande Cabo,
A quem chamais vós outros Tormentório,
Que nunca a Ptolomeu, Pompónio, Estrabo,
Plínio, e quantos passaram, fui notório.
Aqui toda a Africana costa acabo
Neste meu nunca visto Promontório,
Que pera o Pólo Antárctico se estende,
A quem vossa ousadia tanto ofende.


51

— Fui dos filhos aspérrimos da Terra,
Qual Encélado, Egeu e o Centimano;
Chamei-me Adamastor, e fui na guerra
Contra o que vibra os raios de Vulcano;
Não que pusesse serra sobre serra,
Mas, conquistando as ondas do Oceano,
Fui capitão do mar, por onde andava
A armada de Neptuno, que eu buscava.


52

— Amores da alta esposa de Peleu
Me fizeram tomar tamanha empresa.
Todas as Deusas desprezei do céu,
Só por amar das águas a Princesa.
Um dia a vi, coas filhas de Nereu,
Sair nua na praia, e logo presa
A vontade senti de tal maneira,
Que inda não sinto cousa que mais queira.


53

— Como fosse impossível alcançá-la,
Pela grandeza feia de meu gesto,
Determinei por armas de tomá-la,
E a Dóris este caso manifesto.
De medo a Deusa então por mi lhe fala;
Mas ela, cum fermoso riso honesto,
Respondeu: — "Qual será o amor bastante
De Ninfa, que sustente o dum Gigante?


54

— Contudo, por livrarmos o Oceano
De tanta guerra, eu buscarei maneira,
Com que, com minha honra, escuse o dano."
Tal resposta me torna a mensageira.
Eu, que cair não pude neste engano,
(Que é grande dos amantes a cegueira)
Encheram-me com grandes abondanças
O peito de desejos e esperanças.


55

— Já néscio, já da guerra desistindo,
Uma noite, de Dóris prometida,
Me aparece de longe o gesto lindo
Da branca Tétis, única, despida.
Como doudo corri, de longe abrindo
Os braços pera aquela que era vida
Deste corpo, e começo os olhos belos
A lhe beijar, as faces e os cabelos.


56

— Ó que não sei de nojo como o conte!
Que, crendo ter nos braços quem amava,
Abraçado me achei cum duro monte
De áspero mato e de espessura brava.
Estando cum penedo fronte a fronte,
Que eu polo rosto angélico apertava,
Não fiquei homem, não, mas mudo e quedo,
E, junto dum penedo, outro penedo.


57

— Ó Ninfa, a mais fermosa do Oceano,
Já que minha presença não te agrada,
Que te custava ter-me neste engano,
Ou fosse monte, nuvem, sonho, ou nada?
Daqui me parto, irado e quase insano
Da mágoa e da desonra ali passada,
A buscar outro mundo, onde não visse
Quem de meu pranto e de meu mal se risse.


58

— Eram já neste tempo meus Irmãos
Vencidos e em miséria extrema postos,
E, por mais segurar-se os Deuses vãos,
Alguns a vários montes sotopostos.
E, como contra o Céu não valem mãos,
Eu, que chorando andava meus desgostos,
Comecei a sentir do fado inimigo
Por meus atrevimentos, o castigo.


59

— Converte-se-me a carne em terra dura,
Em penedos os ossos se fizeram,
Estes membros, que vês, e esta figura
Por estas longas águas se estenderam.
Enfim, minha grandíssima estatura
Neste remoto cabo converteram
Os Deuses; e, por mais dobradas mágoas,
Me anda Tétis cercando destas águas." —


60

Assim contava, e cum medonho choro
Súbito de ante os olhos se apartou.
Desfez-se a nuvem negra, e cum sonoro
Bramido muito longe o mar soou.
Eu, levantando as mãos ao santo coro
Dos anjos, que tão longe nos guiou,
A Deus pedi que removesse os duros
Casos, que Adamastor contou futuros.


Os Lusíadas, V, 49-60







Baldio


The Child
Max Lyonga



O menino que fui debruça-se furtivo
de meus olhos sobre o recanto da paisagem.
Entre a dureza austera dos prédios
e o largo sorriso dolorido das vidraças
aquele recanto que sobrou da paisagem
pertence intacto ao menino que eu fui outrora
e o menino que eu fui outrora desce
alvoroçado de meus olhos, desliza
entre o capim, atira pedra ao gala-galas
e salta sobre velhas folhas de zinco
apodrecido, num cenário querido de girassóis
antigos. Então parto dali
e o menino que fui regressa extenuado
e adormece na sombra de meus olhos.


Rui Knopfli







SESTA ANTIGA


7 de Junho de 2005



A ruazinha lagarteando ao sol,
O coreto de música deserto
Aumenta ainda mais o silêncio.
Nem um cachorro.
Este poeminha
É só o que acontece no mundo...


Mário Quintana







Del mar azul las transparentes olas


31 de Maio de 2005



Del mar azul las transparentes olas
                                mientras blandas murmuran

sobre la arena, hasta mis pies rodando,
tentadoras me besan y me buscan.

Inquietas lamen de mi planta el borde,
lánzanme airosas su nevada espuma,
y pienso que me llaman, que me atraen
                                hacia sus salas húmedas.


Mas cuando ansiosa quiero
seguirlas por la líquida llanura,
se hunde mi pie en la linfa transparente
                                y ellas de mi se burlan.


Y huyen abandonándome en la playa
a la terrena, inacabable lucha,
como en las tristes playas de la vida
me abandonó inconstante la fortuna.


Rosalia de Castro







A cidade é um chão de palavras pisadas


da esplanada da Graça. Lisboa. 2 de maio de 2005



A cidade é um chão de palavras pisadas
a palavra criança a palavra segredo.
A cidade é um céu de palavras paradas
a palavra distância e a palavra medo.

A cidade é um saco um pulmão que respira
pela palavra água pela palavra brisa
A cidade é um poro um corpo que transpira
pela palavra sangue pela palavra ira.

A cidade tem praças de palavras abertas
como estátuas mandadas apear.
A cidade tem ruas de palavras desertas
como jardins mandados arrancar.

A palavra sarcasmo é uma rosa rubra.
A palavra silêncio é uma rosa chá.
Não há céu de palavras que a cidade não cubra
não há rua de sons que a palavra não corra
à procura da sombra de uma luz que não há.


José Carlos Ary dos Santos







CANTO SEGUNDO


the window
Ivan Durrant



Esta manhã mal saí do portão
parecia-me ter esquecido alguma coisa em casa.
Dois passos até ao damasqueiro
e toca a regressar.

Agora que nada resta para fazer
fico sentado diante da janela
e pergunto-me a mim mesmo: Queres isto? Queres aquilo?

Deitei fogo a páginas de livros, a calendários
e mapas. Para mim a América
já não existe, a Austrália igualmente,
a China na minha cabeça é uma fragrância,
a Rússia uma alva teia de aranha
e a África o sonho de um copo de água.

Há dois ou três dias sigo os passos de Pinela, o camponês,
que procura o mel das abelhas selvagens.


Tonino Guerra, O Mel. Trad.: Mário Rui de Oliveira







OS ESTIVADORES


dockworkers_sunrise
daqui



Só eles suam mas só eles sabem
o preço de estar vivo sobre a terra
Só nessas mãos enormes é que cabem
as coisas mais reais que a vida encerra

Outros rirão e outros sonharão
podem outros roubar-lhes a alegria
mas a um deles é que chamo irmão
na vida que em seus gestos principia

Onde outrora houve o deus e houve a ninfa
eles são a moderna divindade
e o que dantes era pura linfa
é o que sobra agora da cidade

Vede como alheios a tudo o resto
compram com o suor a claridade
e rasgam com a decisão do gesto
o muro oposto da gravidade

Ode marítima é o que chamo à ode
escrita ali sobre a pedra do cais
A natureza é certo que muito pode
mas um homem de pé pode bem mais



Ruy Belo, Homem de Palavra(s)







Prayer


old radio



Some days, although we cannot pray, a prayer
utters itself. So, a woman will lift
her head from the sieve of her hands and stare
at the minims sung by a tree, a sudden gift.

Some nights, although we are faithless, the truth
enters our hearts, that small familiar pain;
then a man will stand stock-still, hearing his youth
in the distant Latin chanting of a train.

Pray for us now. Grade I piano scales
console the lodger looking out across
a Midlands town. Then dusk, and someone calls
a child's name as though they named their loss.

Darkness outside. Inside, the radio's prayer -
Rockall. Malin. Dogger. Finisterre.



Carol Ann Duffy







BAIRRO NEGRO



Olha o sol que vai nascendo
Anda ver o mar
Os meninos vão correndo
Ver o sol chegar

Menino sem condição
Irmão de todos os nus
Tira os olhos do chão
Vem ver a luz

Menino do mal trajar MURILLO
Um novo dia lá vem
Só quem souber cantar
Virá também

Negro bairro negro
Bairro negro
Onde não há pão
Não há sossego

Menino pobre o teu lar
Queira ou não queira o papão
Há-de um dia cantar
Esta canção

Olha o sol que vai nascendo
Anda ver o mar
Os meninos vão correndo
Ver o sol chegar

Se até dá gosto cantar
Se toda a terra sorri
Quem te não há-de amar
Menino a ti

Se não é fúria a razão
Se toda a gente quiser
Um dia hás-de aprender
Haja o que houver

Negro bairro negro
Bairro negro
Onde não há pão
Não há sossego

Menino pobre o teu lar
Queira ou não queira o papão
Há-de um dia cantar
Esta canção


José Afonso