A TRAIÇÃO


Schattenritt
Klaus Oppermann




quando do cavalo de tróia saiu outro
cavalo de tróia e deste um outro
e destrouto um quarto cavalinho de
tróia tu pensaste que da barriguinha
do último já nada podia sair
e que tudo aquilo era como uma parábola
que algum brejeiro estivesse a contar-te
pois foi quando pegaste nessa espécie
de gato de tróia que do cavalo maior
saiu armada até aos dentes de formidável amor
a guerreira a que já trazia dentro de si
os quatro cavalões do vosso apocalipse


Alexandre O'Neill, Poesias Completas







AMOR SILÊNCIO AMARGO A ROÇAR-ME A MORTE


Arrow and Hearts
Tapiès



Amor silêncio amargo a roçar-me a morte
grito partido do vidro sobre o peito
ilha deserta no meio das capitais do norte
grilhetas ajustadas no rio em que me deito.

Distância cumulada remanso de uma espera
ponte da aventura do dois à unidade
amor brilho raiando a chave do desejo
minuto adormecido ao pé da eternidade.

Amor tempo suspenso, ó lânguido receio,
no pranto do meu canto és a presença forte
estame estremecido dissimulado anseio
amor milagre gesto incandescente porte.

Amor olhos perdidos a riscar desenhos
em largo movimento o espaço circular
amor segundo breve, lanceta, tempo eterno
no rápido castigo da lua a gotejar.


Salette Tavares
In 366 poemas que falam de amor,
uma antologia organizada por
Vasco Graça Moura







Quem não sai da sua casa


Vom Winder verweht
Rene Lauterbach



Quem não sai da sua casa
Não atravessa povos, montes, vales,
Não vê as cenas bíblicas das eiras,
Nem mulheres de infusa, equilibradas,
Nem carros lentos, chiadores,
Nem homens suados,
Quem vive como o insecto cativo no seu redondel,
Cria mil olhos para nada...


Irene Lisboa







ESTAR COMIGO


aufgefangen
Ralf Greiner



ESTAR COMIGO
é o meu nativo
modo de estar

Desertam as sombras
Entre os objectos
e o chão límpido
sua ausência é
a ficção do dia.


Sebastião Alba, A Noite Dividida







Sexta-feira


André Wohlgemuth
André Wohlgemuth



Tranquila Sexta-feira
abandonada Sexta-feira
Sexta-feira cada vez mais triste como ruelas antigas
Sexta-feira de indolentes pensamentos indispostos
Sexta-feira de sinuosos e nefastos espreguiçamentos
Sexta-feira de nenhuma expectativa
Sexta-feira de rendição.

Casa vazia
casa solitária
casa trancada contra a investida da juventude
casa da escuridão e ânsias de sol
casa de solidão, augúrio e indecisão
casa de cortinas, livros, guarda-louça, fotografias.

Ah, como a minha vida fluiu silenciosa e serena
como uma corrente profunda
através do coração dessas silenciosas, abandonadas Sextas-feiras
através do coração dessas tristes casas vazias
ah, como a minha vida fluiu silenciosa e serena.



Forough Farrokhzad. Versão de Vasco Gato







Madrigal


Agar socorrida por um anjo. Musée National du Louvre
Giovanni Lanfranco


Em fim fenece o dia,
Em fim chega da noite o triste espanto
E não chega desta alma o doce encanto;
Em fim fica triunfante a tirania,
Vencido o sofrimento,
Sem alívio meu mal, eu sem alento,
A sorte sem piedade,
Alegre a emulação, triste a vontade,
O gosto fenecido,
Eu infelice em fim, Lauro esquecido.
Quem viu mais dura sorte?
Tantos males, amor, para uma morte?
Não basta contra a vida
Esta ausência cruel, esta partida?
Não basta tanta dor? tanto receio?
Tanto cuidado, ai triste, e tanto enleio?
Não basta estar ausente,
Para perder a vida infelizmente?
Se não também cruel neste conflito
Me negas o socorro de um escrito?
Porque esta dor que a alma me penetra
Não ache o maior bem na menor letra,
Ai bem fazes amor, tira-me tudo!
Não haja alívio não, não haja escudo
Que a vida me defenda!
Tudo me falte, em fim, tudo me ofenda,
Tudo me tire a vida
Pois eu a não perdi na despedida.


Violante do Céu, Rimas Várias













SOMBRAS


Sombras




A meio desta vida continua a ser
difícil, tão difícil
atravessar o medo, olhar de frente
a cegueira dos rostos debitando
palavras destinadas a morrer
no lume impaciente de outras bocas
anunciando o mel ou o vinho ou
o fel.

Calmamente sentado num sofá,
começas a entender, de vez em quando
os condenados a prisão perpétua
entre as quatro paredes do espírito
e um esquife negro, onde vão desfilando
imagens, só imagens
de canal em canal, sintonizadas
com toda a angústia e estupidez do mundo.

As pessoas – tu sabes – as pessoas são feitas
de vento
e deixam-se arrastar pela mais bela
respiração das sombras,
pla morte que repete os mesmos gestos
quando o crepúsculo fica a sós connosco
e a noite se redime com uma estrela
a prometer salvar-nos.

A meio desta vida os versos abrem
paisagens virtuais onde se perdem
as intenções que alguma vez tivemos,
o recorte obscuro de perfis
desenhados a fogo há muitos anos
numa alma forrada de espelhos
mas sempre tão vazia, sem abrigo
para corpo nenhum.


Fernando Pinto do Amaral, Pena Suspensa







O curso deste rio


Ruhe
Erica Melis



O curso deste rio
é feito de pensar
o silêncio mais frio
que há por dentro de amar:

onde nada nos chega,
nem a voz atravessa
esta ausente incerteza
que nos trai e dispersa;

onde nós não vivemos
mas brilha no olhar
o que não nos dissémos
nem pudémos calar.


Luís Filipe Castro Mendes, Modos de Música







Eu falo...



Maio de 2005








Femme noire


La Négresse Couchée
Rembrandt



Femme nue, femme noire
Vétue de ta couleur qui est vie, de ta forme qui est beauté
J'ai grandi à ton ombre; la douceur de tes mains bandait mes yeux
Et voilà qu'au coeur de l'Eté et de Midi,
Je te découvre, Terre promise, du haut d'un haut col calciné
Et ta beauté me foudroie en plein coeur, comme l'éclair d'un aigle
Femme nue, femme obscure
Fruit mûr à la chair ferme, sombres extases du vin noir, bouche qui fais lyrique ma bouche
Savane aux horizons purs, savane qui frémis aux caresses ferventes du Vent d'Est
Tamtam sculpté, tamtam tendu qui gronde sous les doigts du vainqueur
Ta voix grave de contralto est le chant spirituel de l'Aimée
Femme noire, femme obscure
Huile que ne ride nul souffle, huile calme aux flancs de l'athlète, aux flancs des princes du Mali
Gazelle aux attaches célestes, les perles sont étoiles sur la nuit de ta peau.
Délices des jeux de l'Esprit, les reflets de l'or ronge ta peau qui se moire
A l'ombre de ta chevelure, s'éclaire mon angoisse aux soleils prochains de tes yeux.
Femme nue, femme noire
Je chante ta beauté qui passe, forme que je fixe dans l'Eternel
Avant que le destin jaloux ne te réduise en cendres pour nourrir les racines de la vie.


Léopold Sédar Senghor, Chants d'ombre



Mulher nua, mulher negra
Vestida de tua cor que é vida, de tua forma que é beleza!
Cresci à tua sombra; a doçura de tuas mãos acariciou os meus olhos.
E eis que, no auge do verão, em pleno Sul, eu te descubro,
Terra prometida, do cimo de alto desfiladeiro calcinado,
E tua beleza me atinge em pleno coração, como o golpe certeiro
de uma águia.
Fêmea nua, fêmea escura.
Fruto sazonado de carne vigorosa, êxtase escuro de vinho negro,
boca que faz lírica a minha boca
savana de horizontes puros, savana que freme com
as carícias ardentes do vento Leste.
Tam-tam escultural, tenso tambor que murmura sob os dedos
do vencedor
Tua voz grave de contralto é o canto espiritual da Amada.
Fêmea nua, fêmea negra,
Lençol de óleo que nenhum sopro enruga, óleo calmo nos flancos do atleta,
nos flancos dos príncipes do Mali.
Gazela de adornos celestes, as pérolas são estrelas sobre
a noite da tua pele.
Delícia do espírito, as cintilações de ouro sobre tua pele que ondula
à sombra de tua cabeleira. Dissipa-se minha angústia,
ante o sol dos teus olhos.
Mulher nua, fêmea negra,
Eu te canto a beleza passageira para fixá-la eternamente,
antes que o zelo do destino te reduza a cinzas para
alimentar as raízes da vida.



Léopold Sédar Senghor. Trad.: Guilherme de Souza Castro)




;-)

Ouvindo a música, em Lisboa, com nuvens.

Beijo meu.

Parabéns, SALMOURA.









MAR BRAVO


Maio de 2005




Mar que ouvi sempre cantar murmúrios
Na doce queixa das elegias,
Como se fosses, nas tardes frias
De tons purpúreos,
A voz das minhas melancolias.

Com que delícia neste infortúnio,
Com que selvagem, profundo gozo,
Hoje te vejo bater raivoso,
Na maré-cheia de novilúnio,
Mar rumoroso!

Com que amargura mordes a areia,
Cuspindo a baba da acre salsugem,
No torvelinho de ondas que rugem
Na maré-cheia,
Mar de sargaços e de amarugem!

As minhas cóleras homicidas,
Meus velhos ódios de iconoclasta,
Quedam-se absortos diante da vasta,
Pérfida vaga que tudo arrasta,
Mar que intimidas!

Em tuas ondas precipitadas,
Onde flamejam lampejos ruivos,
Gemem sereias despedaçadas.
Em longos uivos
Multiplicados pelas quebradas.

Mar que arremetes, mar que não cansas,
Mar de blasfémias e de vinganças,
Como te invejo! Dentro em meu peito
Eu trago um pântano insatisfeito
De corrompidas desesperanças!...


Manuel Bandeira, Antologia Poética







Mãos


Almada - 19 de Maio de 2005




Com mãos se faz a paz se faz a guerra.
Com mãos tudo se faz e se desfaz.
Com mãos se faz o poema - e são de terra.
Com mãos se faz a guerra - e são a paz.

Com mãos se rasga o mar. Com mãos se lavra.
Não são de pedras estas casas, mas
de mãos. E estão no fruto e na palavra
as mãos que são o canto e são as armas.

E cravam-se no tempo como farpas
as mãos que vês nas coisas transformadas.
Folhas que vão no vento: verdes harpas.

De mãos é cada flor, cada cidade.
Ninguém pode vencer estas espadas:
nas tuas mãos começa a liberdade.


Manuel Alegre**

** ouvir aqui








Senhora das tempestades



Maio de 2005




Senhora das tempestades e dos mistérios originais
quando tu chegas a terra treme do lado esquerdo
trazes o terramoto a assombração as conjunções fatais
e as vozes negras da noite Senhora do meu espanto e do meu medo.

Senhora das marés vivas e das praias batidas pelo vento
há uma lua do avesso quando chegas
crepúsculos carregados de presságios e o lamento
dos que morrem nos naufrágios Senhora das vozes negras.

Senhora do vento norte com teu manto de sal e espuma
nasce uma estrela cadente de chegares
e há um poema escrito em página nenhuma
quando caminhas sobre as águas Senhora dos sete mares.

Conjugação de fogo e luz e no entanto eclipse
trazes a linha magnética da minha vida Senhora da minha morte
teu nome escreve-se na areia e é uma palavra que só Deus disse
quando tu chegas começa a música Senhora do vento norte.

Escreverei para ti o poema mais triste
Senhora dos cabelos de alga onde se escondem as divindades
quando me tocas há um país que não existe
e um anjo poisa-me nos ombros Senhora das Tempestades.

Senhora do sol do sul com que me cegas
a terra toda treme nos meus músculos
consonância dissonância Senhoras das vozes negras
coroada de todos os crepúsculos.

Senhora da vida que passa e do sentido trágico
do rio das vogais Senhora da litúrgia
sibilação das consoantes com seu absurdo mágico
de que não fica senão a breve música.

Senhora do poema e da oculta fórmula da escrita
alquimia de sons Senhora do vento norte
que trazes a palavra nunca dita
Senhora da minha vida Senhora da minha morte.

Senhora dos pés de cabra e dos parágrafos proibidos
que te disfarças de metáfora e de soprar marítimo
Senhora que me dóis em todos os sentidos
como um ritmo só ritmo como um ritmo.

Batem as sílabas da noite na oclusão das coronárias
Senhora da circulação que mata e ressuscita
trazes o mar a chuva as procelárias
batem as sílabas da noite e és tu a voz que dita.

Batem os sons os signos os sinais
trazes a festa e a despedida Senhora dos instantes
fica o sentido trágico do rio das vogais
o mágico passar das consoantes.

Senhora nua deitada sobre o branco
com tua rosa-dos-ventos e teu cruzeiro do sul
nascem faunos com tridentes no teu flanco
Senhora de branco deitada no azul.

Senhora das águas transbordantes no cais de súbito vazio
Senhora dos navegantes com teu astrolábio e tua errância
teu rosto de sereia à proa de um navio
tudo em ti é partida tudo em ti é distância.

Senhora da hora solitária do entardecer
ninguém sabe se chegas como graça ou como estigma
onde tu moras começa o acontecer
tudo em ti é surpresa Senhora do grande enigma.

Tudo em ti é perder Senhora quantas vezes
Setembro te levou para as metrópoles excessivas
batem as sílabas do tempo no rolar dos meses
tudo em ti é retorno Senhora das marés vivas.

Senhora do vento com teu cavalo cor de acaso
tua ternura e teu chicote sobre a tristeza e a agonia
galopas no meu sangue com teu cateter chamado Pégaso
e vais de vaso em vaso Senhora da arritmia.

Tudo em ti é magia e tensão extrema
Senhora dos teoremas e dos relâmpagos marinhos
batem as sílabas da noite no coração do poema
Senhora das tempestades e dos líquidos caminhos.

Tudo em ti é milagre Senhora da energia
quando tu chegas a terra treme e dançam as divindades
batem as sílabas da noite e tudo é uma alquimia
ao som do nome que só Deus sabe Senhoras das tempestades.



Manuel Alegre


Na lonjura, a minha prendinha para ti, Mada.
Abraço - grande, grandão mesmo!
:-)








Les mots que nous employons



pagine dai quaderni di Artaud
daqui




Les mots que nous employons
on me les a passés
et je les emploie,
mais pas pour me faire comprendre,
pas pour achever de m'en vider,
Alors pourquoi?
C'est qu'en réalité je ne les emploie pas
En réalité je ne fais pas autre chose
que de me taire
et de cogner.


Antonin Artaud, Suppôts et supplications







Ó sino da minha aldeia


Mértola




Ó sino da minha aldeia,
Dolente na tarde calma,
Cada tua badalada
Soa dentro da minha alma.

E é tão lento o teu soar,
Tão como triste da vida,
Que já a primeira pancada
Tem o som de repetida.

Por mais que me tanjas perto,
Quando passo, sempre errante,
És para mim como um sonho,
Soas-me na alma distante.

A cada pancada tua,
Vibrante no céu aberto,
Sinto mais longe o passado,
Sinto a saudade mais perto.


Fernando Pessoa, Cancioneiro







Soror Mariana - Beja


wheat field
Van Gogh



Cortaram os trigos. Agora
A minha solidão vê-se melhor.


Sophia de Mello Breyner Andresen,
O nome das Coisas








Esta manhã encontrei o teu nome nos meus sonhos


Quarto Cinzento
Vieira da Silva



Esta manhã encontrei o teu nome nos meus sonhos
e o teu perfume a transpirar na minha pele. E o corpo
doeu-me onde antes os teus dedos foram aves
de verão e a tua boca deixou um rasto de canções.

No abrigo da noite, soubeste ser o vento na minha
camisola; e eu despi-a para ti, a dar-te um coração
que era o resto da vida - como um peixe respira
na rede mais exausta. Nem mesmo à despedida

foram os gestos contundentes: tudo o que vem de ti
é um poema. Contudo, ao acordar, a solidão sulcara
um vale nos cobertores e o meu corpo era de novo
um trilho abandonado na paisagem. Sentei-me na cama

e repeti devagar o teu nome, o nome dos meus sonhos,
mas as sílabas caíam no fim das palavras, a dor esgota
as forças, são frios os batentes nas portas da manhã.


Maria do Rosário Pedreira, O Canto do Vento nos Ciprestes







Dos hombres caminaron por la luna


the painter to the moon
Chagall



Dos hombres caminaron por la luna,
Otros después. ¿Qué puede la palabra,
Qué puede lo que el arte sueña y labra,
Ante su real y casi irreal fortuna?
Ebrios de horror divino y de aventura,
Esos hijos de Whitman han pisado
El páramo lunar, el inviolado
Orbe que, antes de Adán, pasa y perdura.
El amor de Endimión en su montaña,
El hipogrifo, la curiosa esfera
De Wells, que en mi recuerdo es verdadera,
Se confirman. De todos es la hazaña.
No hay en la tierra un hombre que no sea
Hoy más valiente y más feliz. El día
Inmemorial se exalta de energía
Por la sola virtud de la Odisea
De esos amigos mágicos. La luna,
Que el amor secular busca en el cielo
Con triste rostro y no saciado anhelo,
Será su monumento, eterna y una.


Jorge Luis Borges, El oro de los Tigres







Azul


Andrea
Andrea



Adivinhei-te
através da verdura azul,
colhendo as flores
que iam abrir na próxima primavera.

Eu era o andarilho sem cansaço,
os bolsos cheios de tesoiros desprezados:
os seixos
que as águas modelaram durante milhões de anos,
as asas
que as borboletas entregaram aos ventos,
as sementes
que entram pelas janelas dos comboios e querem
dialogar connosco…

(Um raio de sol
acariciava a tua face
através da verdura azul!...)


Saúl Dias, Obra Poética







COTOVIA


alouette
Lulu Lagland



Alô, cotovia,
Aonde voaste,
Por onde andaste,
Que tantas saudades me deixaste?

- Andei onde deu o vento.
Onde foi meu pensamento.
Em sítios, que nunca viste,
De um país que não existe…
Voltei, te trouxe alegria.

- Muito contas, cotovia!
E que outras terras distantes
Visitaste? Dize ao triste.

- Líbia ardente, Cítia fria,
Europa, França, Baía…
- E esqueceste Pernambuco,
Distraída?

- Voei ao Recife, no Cais
Pousei na rua da Aurora.

- Aurora da minha vida,
Que os anos não trazem mais!

- Os anos não, nem os dias,
que isso cabe às cotovias.
Meu bico é bem pequenino
Para o bem que é deste mundo:
Se enche com uma gota de água.
Mas sei torcer o destino,
Sei no espaço de um segundo
Limpar o pesar mais fundo.
Voei ao Recife, e dos longes
Das distâncias, aonde alcança
Só a asa da cotovia,
- Do mais remoto perempto
Dos teus dias de criança
Te trouxe a extinta esperança,
Trouxe a perdida alegria.


Manuel Bandeira







Preia-mar


Maio de 2005



As ondas quebram na areia,
dizem segredos perdidos...
Saudades da maré-cheia,
de barcos e tempos idos...

Segredos tristes, lamentos,
que o mar não pôde calar...
E foi dizê-los aos ventos,
aos pescadores, ao luar...

As ondas dizem na areia
saudades de tempos idos...
Segredos da maré-cheia,
de barcos tristes
- perdidos.


Daniel Filipe, Missiva







Retrato


Mulher Chorando
Picasso


Eu não tinha este rosto de hoje,
assim calmo, assim triste, assim magro,
nem estes olhos vazios,
nem o lábio amargo.

Eu não tinha estas mãos sem força,
tão paradas e frias e mortas;
eu não tinha este coração
que nem se mostra.

Eu não dei por esta mudança,
tão simples, tão certa, tão fácil:
- Em que espelho ficou perdida
a minha face?


Cecília Meireles, Poesia







Libertà


a Roadside Respite - In National Geographic Magazine - Portugal
Tomasz Tomaszewski



Nosostros los Gitanos tenemos una sola religión: la libertad.
En cambio de ella renunciamos a la riqueza, al poder, a la ciencia y a la gloria.
Vivimos cada día como si fuera el último.
Cuando se muere, se deja todo: una miserable carroza com un gran imperio.
Y creemos que en ése momento sea mucho mejor haber sido Gitanos que reyes.
No pensamos en la muerte. No la tememos, eso es.
Nuestro secreto es gozar cada día de las pequeñas cosas
que la vida nos ofrece y que lo demás no saben apreciar:
una mañana de sol, un baño en la vertiente,
la mirada de alguien que nos ama.
Es difícil entender estas cosas, lo sé. Gitanos se nace.
Nos gusta caminar bajo las estrellas.
Se dicen cosas estrañas sobre los Gitanos.
Se dice que leen el futuro en las estrellas
y que tienen la poción del amor.
Lo gente no cree en lo que no se sabe explicar.
Nosostros, en cambio, no tratamos de explicarnos las cosas en las que creemos.
La nuestra es una vida simple, primitiva.
Nos basta tener por techo el cielo,
fuego para calentarnos
y nuestras canciones cuando estamos tristes.


Spatzo (Vittorio Mayer Pasquale)**




Nós, ciganos, temos uma só religião: a da liberdade.
Em troca desta
renunciamos à riqueza, ao poder, à ciência e à glória.
Vivemos cada dia como se fosse o último. Quando se morre, deixa-se tudo:
um miserável carroção como um grande império.
E nós cremos que nesse momento é muito melhor ser cigano do que rei.
Nós não pensamos na morte. Não a tememos - eis tudo.
O nosso segredo está
no gozar em cada dia as pequenas coisas que a vida nos oferece e que os outros
homens não sabem apreciar:
uma manhã de sol, um banho na torrente, o contemplar alguém que se ama.
É difícil compreender estas coisas, eu sei. Nasce-se cigano.
Agrada-nos caminhar sob as estrelas.
Contam-se estranhas histórias sobre ciganos.
Diz-se que lemos nas estrelas e que possuímos o
filtro do amor.
As pessoas não acreditam nas coisas que não sabem explicar.
Nós, pelo contrário, não procuramos explicar as coisas em que acreditamos.
A nossa vida é uma vida simples, primitiva,
basta-nos por tecto um céu,
um fogo para nos aquecer
e as nossas canções quando estamos tristes.


Pasqualle Spatzo, Raiz e Utopia







Quero um cavalo


Die Grossen Blauen Pferde
Franz Marc



Quero um cavalo de várias cores,
Quero-o depressa, que vou partir,
Esperam-me prados com tantas flores,
Que só cavalos de várias cores
Podem servir.

Quero uma sela feita de restos
Dalguma nuvem que ande no céu.
Quero-a evasiva – nimbos e cerros –
Sobre os valados, sobre os aterros,
Que o mundo é meu.

Quero que as rédeas façam prodígios:
Voa, cavalo, galopa mais,
Trepa às camadas do céu sem fundo,
Rumo àquele ponto, exterior ao mundo,
Para onde tendem as catedrais.

Deixem que eu parta, agora, já,
Antes que murchem todas as flores.
Tenho a loucura, sei o caminho,
Mas como posso partir sozinho
Sem um cavalo de várias cores?


Reinaldo Ferreira, Poemas







O Ovo de Galinha


Egg study
Sue Choppers-Wife



O ovo revela o acabamento,
a toda mão que o acaricia,
daquelas coisas torneadas
num trabalho de toda a vida.

E que se encontra também noutras
que entretanto mão não fabrica:
nos corais, nos seixos rolados
e em tantas coisas esculpidas

cujas formas simples são obra
de mil inacabáveis lixas
usadas por mãos escultoras
escondidas na água, na brisa.

No entanto, o ovo, e apesar
da pura forma concluída,
não se situa no final:
está no ponto de partida.


João Cabral de Melo Neto, Terceira feira







Meditação


Maio 2005




Tudo imaterial na praia rasa
Cheia de sol, ao fim da tarde,
Proa ao vento quebrada
A vaga entre rochedos, se ilumina.

É tudo imaterial, tudo neblina
Ténue que aos poucos arde,
Ao fim da tarde se desfaz, flutua,
E voo de ave deslisa
Ao longe linha pura.
Tudo imaterial na praia rasa.

Aqui ninguém me vê: amo a ternura.


Ruy Cinatti, O Livro do Nómada meu Amigo







HOME AMB BLUES (A LA MANERA D'ELLINGTON, BROWN AND BEIGE)


Joueurs de jazz
Eric Vançon



El blues
El blues serveix
El blues serveix per cantar les solitàries nits
El blues serveix per cantar les meves solitàries nits
El blues
El blues no és res
El blues no és res més que un cant
El blues no és res més que un cant per cridar-lo en les meves solitàries
nits
El blues és una estrella que brilla cada nit per no apagar-se després
fins a l'altra nit
El blues és una estrella que brilla
El blues és una estrella
El blues és
El blues
El blues és un prec que canten els negres i uns blancs per demanar que no sigui tan
negra la nit
El blues és un prec que canten els negres i uns blancs per demanar
El blues és un prec que canten els homes
El blues és un prec
El blues és
EL BLUES



Joaquim Horta, Home que espera







Canção de embalar







"Dorme Maninho
pra não vir Ti Lobo..."

Maninho
volta-se e dorme
no colchão de saco vazio
sobre a terra batida.

Ao lado no chão dormindo também
o naviozinho de lata
que fez com suas mãos...

Apaga-se a luz.
Maninho acorda depois
por causa da voz falando baixinho
segredando
no meio escuro...

Não fala de mamãe...
Ti Lobo talvez...
Mas nhô Chico Polícia há dias contava:
"Ti Lobo não tem..."

Essa voz nocturna segredando...
O homem branco talvez
que lá vai de vez em quando

"Dorme Maninho
pra não vir Ti Lobo..."

Volta-se e torna a dormir...

Amanhã cedo vai correr o naviozinho de lata
nas poças da Praia Negra...


Jorge Barbosa


LENA
amiga, para ti todo o meu cretcheu
mantenhas :-)








Regressámos ao anonimato


clearlette
Clearlette



Regressámos ao anonimato
mais leves.
Mas é minha a muda inquietação
esse temor
da armadilha do cinismo.

A noite contempla-nos
despojados de sonhos
e, tu disseste
- tão próximas as estrelas –
tão longo o caminho para chegar a elas.


Maria Alexandra Dáskalos, Do Tempo Suspenso







Um homem nunca chora


L'Homme et son destin
Danielle Jaquillard



Acreditava naquela história
do homem que nunca chora.
Eu julgava-me um homem.
Na adolescência
meus filmes de aventuras
punham-me muito longe de ser cobarde
na arrogante criancice do herói de ferro.
Agora tremo.
E agora choro.
Como um homem treme.
Como chora um homem!


José Craveirinha, Antologia de poetas africanos