CANTO DE NASCIMENTO


Maternidade
Lívio de Morais



Aceso está o fogo
prontas as mãos

o dia parou a sua lenta marcha
de mergulhar na noite

                                                  As mãos criam na água
                                                  uma pele nova

                                                  panos brancos
                                                  uma panela a ferver
                                                  mais a faca de cortar

Uma dor fina
a marcar os intervalos de tempo
vinte cabaças de leite
que o vento trabalha manteiga

a lua pousada na pedra de afiar

                            Uma mulher oferece à noite
                            o silêncio aberto
                            de um grito
                            sem som nem gesto
                            apenas o silêncio aberto assim ao grito
                            solto ao intervalo das lágrimas

As velhas desfiam uma lenta memória
que acende a noite de palavras
depois aquecem as mãos de semear fogueiras

                                                  Uma mulher arde
                                                  no fogo de uma dor fria
                                                  igual a todas as dores
                                                  maior que todas as dores.
                                                  Esta mulher arde
                                                  no meio da noite perdida
                                                  colhendo o rio

                                      enquanto as crianças dormem
                                      seus pequenos sonhos de leite.


Paula Tavares, O Lago da Lua







PRELÚDIO


Judee Plourde
Judee Plourde



Pela estrada desce a noite
Mãe-Negra, desce com ela...

Nem buganvílias vermelhas
nem vestidinhos de folhos,
nem brincadeiras de guisos,
nas suas mãos apertadas.
Só duas lágrimas grossas,
em duas faces cansadas.

Mãe-Negra tem voz de vento,
voz de silêncio batendo
nas folhas do cajueiro...

Tem voz de noite, descendo,
de mansinho, pela estrada...

Que é feito desses meninos
que gostava de embalar?...

Que é feito desses meninos
que ela ajudou a criar?...
Quem ouve agora as histórias
que costumava contar?...

Mãe-Negra não sabe nada...

Mas ai de quem sabe tudo,
como eu sei tudo
Mãe-Negra!...

Os teus meninos cresceram,
e esqueceram as histórias
que costumavas contar...

Muitos partiram p'ra longe
quem sabe se hão-de voltar!...

Só tu ficaste esperando
mãos cruzadas no regaço,
bem quieta bem calada.

É tua a voz deste vento,
desta saudade descendo,
de mansinho pela estrada...


Alda Lara, Poemas







Namoro


Chichorro
Chichorro



Mandei-lhe uma carta em papel perfumado
e com letra bonita eu disse ela tinha
um sorriso luminoso tão quente e gaiato
como o sol de Novembro brincando de artista nas acácias floridas
espalhando diamantes na fímbria do mar
e dando calor ao sumo das mangas.
Sua pele macia - era sumaúma...
Sua pele macia, da cor do jambo, cheirando a rosas
sua pele macia guardava as doçuras do corpo rijo
tão rijo e doce - como o maboque...

Seus seios, laranjas - laranjas do Lage
seus dentes... - marfim...

Mandei-lhe essa carta
e ela disse que não.

Mandei-lhe um cartão
que o amigo Maninho tipografou:
«Por ti sofre o meu coração».
Num canto - SIM, noutro canto - NÃO
E ela o canto do NÃO dobrou.

Mandei-lhe um recado pela Zefa do Sete
pedindo rogando de joelhos no chão
pela Senhora do Cabo, pela Santa Ifigénia,
me desse a ventura do seu namoro...
E ela disse que não.

Levei à avó Chica, quimbanda de fama
a areia da marca que o seu pé deixou
para que fizese um feitiço forte e seguro
que nela nascesse um amor como o meu...
E o feitiço falhou.

Esperei-a de tarde, à porta da fábrica,
ofertei-lhe um colar e um anel e um broche,
paguei-lhe doces na calçada da Missão,
ficámos num banco do largo da Estátua,
afaguei-lhe as mãos...
falei-lhe de amor... e ela disse que não.

Andei barbado, sujo e descalço,
como um mona-ngamba.
Procuraram por mim
«-Não viu... (ai, não viu...? não viu Benjamim?»
E perdido me deram no morro da Samba.

Para me distrair
levaram-me ao baile do sô Januário
mas ela lá estava num canto a rir
contando o meu caso às moças mais lindas do Bairro Operário.

Tocaram uma rumba - dancei com ela
e num passo maluco voámos na sala
qual uma estrela riscando o céu!
E a malta gritou: «Aí, Benjamim!»
Olhei-a nos olhos - sorriu para mim
pedi-lhe um beijo - e ela disse que sim.



Viriato da Cruz







ESPERANÇA


Joan Bresnan
Joan Bresnan



É como se alguém me pisasse
e eu me risse
- uma alegria toda cor e luz.

É como se alguém me batesse
e eu cantasse
- um canto de amizade e paz.

É como se alguém me cuspisse
e eu passasse indiferente
- um caminho claro como o dia.

É como se alguém me apunhalasse
e eu o abraçasse
- um fogo de fraternidade humana.

Eu sei o teu nome, eu sei o teu nome
este vício secreto e interior
esta badalada do relógio da alma
este pulsar no coração do mundo
esta consciência duma ferida em chaga
este sentir a dor duma mulher pobre e faminta.

Eu sei o teu nome, eu sei o teu nome
Ó silencioso grito dos camponeses sem terra!
Ó vento da certeza que os carrascos temem!


Vasco Cabral, A luta é a minha primavera
in 50 Poetas Africanos, org. Manuel Ferreira







Viagem


26 de Abril de 2005



Aparelhei o barco da ilusão
E reforcei a fé de marinheiro.
Era longe o meu sonho, e traiçoeiro
O mar...
(Só nos é concedida
Esta vida
Que temos;
E é nela que é preciso
Procurar
O velho paraíso
Que perdemos.)

Prestes, larguei a vela
E disse adeus ao cais, à paz tolhida.
Desmedida,
A revolta imensidão
Transforma dia a dia a embarcação
Numa errante e alada sepultura...
Mas corto as ondas sem desanimar.
Em qualquer aventura,
O que importa é partir, não é chegar.


Miguel Torga, Antologia Poética







GUERNICA


Guernica. Centro de Arte Reina Sofia. Madrid
Picasso



Di-lo-ei pela cor dos teus olhos,
pela luz
onde me deito,
di-lo-ei pelo ódio, pelo amor
com que toquei as pedras nuas,
por uns passos verdes de ternura,
pelas adelfas,
quando as adelfas nestas ruas
podem saber a morte,
pelo mar
azul,
azul-cantábrico, azul-bilbau,
quando amanhece,
di-lo-ei pelo sangue
violado
e limpo e inocente,
por uma árvore,
uma só árvore, di-lo-ei:
Guernica!


Eugénio de Andrade, Mar de Setembro







ABRIL DE ABRIL


Maria Keil
Maria Keil




Era um Abril de amigo         Abril de trigo
Abril de trevo e trégua e vinho e húmus
Abril de novos ritmos novos rumos.

Era um Abril comigo         Abril contigo
ainda só ardor e sem ardil.
Abril sem adjectivo Abril de Abril.

Era um Abril na praça         Abril de massas
era um Abril na rua         Abril a rodos
Abril de sol que nasce para todos.

Abril de vinho e sonho em nossas taças
era um Abril de clava         Abril em acto
em mil novecentos e setenta e quatro.

Era um Abril viril         Abril tão bravo
Abril de boca a abrir-se         Abril palavra
esse Abril em que        Abril se libertava.

Era um Abril de clava Abril de cravo
Abril de mão na mão e sem fantasmas
esse Abril em que Abril floriu nas armas.



Manuel Alegre, 30 Anos de Poesia







Liberté


Abril de 2005 - LIBERDADE



Sur mes cahiers d'écolier
Sur mon pupitre et les arbres
Sur le sable sur la neige
J'écute ton nom

Sur toutes les pages lues
Sur toutes les pages blanches
Pierre sang papier ou cendre
J'écris ton nom

Sur les images dorées
Sur les armes des guerriers
Sur la couronne de rois
J'écris ton nom

Sur la jungle et le désert
Sur les nids sur les genêts
Sur l'écho de mon enfance
J'écris ton nom

Sur les merveilles des nuits
Sur le pain blanc de journées
Sur les saisons fiancées
J'écris ton nom

Sur tous mes chiffons d'azur
Sur l'étang soleil moisi
Sur le lac lune vivante
J'écris ton nom

Sur le champs sur l'horizon
Sur les ailes des oiseaux
Et sur le moulin des ombres
J'écris ton nom


Paul Eluard, ***

*** daqui







ARDIS


Norbert Piechula
Norbert Piechula



A incompreendida figura do amor
a céu descoberto sem que se exprima
rodeamo-nos de vinganças, medidas, ardis
e enchemos os livros da ardente ausência
de nós próprios

Ao entardecer corremos
ao pontão sobre o mar
e a vida só se parece
com alguma coisa que sabemos


José Tolentino de Mendonça,
in 366 poemas que falam de amor
uma antologia organizada por
Vasco Graça Moura







Ignoto Deo


Mértola



Desisti de saber qual é o Teu nome,
Se tens ou não tens nome que Te demos,
Ou que rosto é que toma, se algum tome,
Teu sopro tão além de quanto vemos.

Desisti de Te amar, por mais que a fome
Do teu amor nos seja o mais que temos,
E empenhei-me em domar, nem que os não dome,
Meus, por Ti, passionais e vãos extremos.

Chamar-Te amante ou pai... grotesco engano
Que por demais tresanda a gosto humano!
Grotesco engano o dar-te forma! E enfim,

Desisti de Te achar no que quer que seja,
De Te dar nome, rosto, culto, ou igreja...
- Tu é que não desistirás de mim!


José Régio, Biografia








Eu


19-4-2005



Eu sou a que no mundo anda perdida,
Eu sou a que na vida não tem norte,
Sou a irmã do Sonho, e desta sorte
Sou a crucificada... a dolorida...

Sombra de névoa ténue e esvaecida,
E que o destino amargo, triste e forte,
Impele brutalmente para a morte!
Alma de luto sempre incompreendida!...

Sou aquela que passa e ninguém vê...
Sou a que chamam triste sem o ser...
Sou a que chora sem saber porquê...

Sou talvez a visão que Alguém sonhou,
Alguém que veio ao mundo pra me ver
E que nunca na vida me encontrou!


Florbela Espanca, Livro de Mágoas







COM O ESPÍRITO DA CASA


Silence
Mireille Turcot



Acabei hoje o sabonete cujo uso iniciaste aquando
o teu último banho cá em casa. Ficaram coisas que
te pertencem e que não sei se deva guardar,
a saber: um candeeiro, um desenho, uma fotografia.
Outras coisas ficaram
alguns discos e já não sei que livro. Não ferem
tanto. Há ainda a memória da pele, o amarelo dos
olhos e algumas expressões do teu português falado.
Mas estas últimas coisas já se confundem com o
espírito da casa, quero dizer-te com a poeira da
casa.


João Miguel Fernandes Jorge,
A Jornada de Cristóvão de Távora. Primeira Parte







A PREGUIÇA


Rainer Müller
Rainer Müller




Este

                lento

                                talento

        de vazarmos tristeza.



José Carlos Ary dos Santos, Obra Poética








This is my letter to the World


mondo




                                                This is my letter to the World
                                                That never wrote to Me –
                                                The simple News that Nature told –
                                                With tender Majesty

                                                Her Message is committed
                                                To Hands I cannot see –
                                                For love of Her – Sweet – countrymen –
                                                Judge tenderly – of Me


                                                Emily Dickinson


            Ao Mundo escrevo esta carta,
            A quem nunca me escreveu –
            As simples Novas que a Natura conta –
            Com suave Majestade.

            A Mensagem é confiada
            A Mãos que não posso ver –
            Só por amor da Natureza – irmãos –
            Julgai-me com suavidade.


            Emily Dickinson – Trad.: Jorge de Sena



                                              Esta é a minha carta ao Mundo
                                              Que nunca Me escreveu –
                                              As Notícias simples que a Natureza contou –
                                              Com branda Majestade

                                              A sua Mensagem está destinada
                                              A Mãos que não consigo ver –
                                              Pelo Seu amor – Afáveis – camponeses –
                                              Julguem-me brandamente – a Mim


                                              Emily Dickinson – Trad.: Cecília Rego Pinheiro



        Esta é a minha carta ao Mundo
        Que nunca Me escreveu –
        As simples Notícias que a Natureza contou –
        Com a sua terna Majestade

        A sua Mensagem é entregue
        A Mãos que não posso ver –
        Pelo Seu amor – Doces – concidadãos –
        Fazei de Mim – um terno juízo


        Emily Dickinson – Trad.: Nuno Júdice








CANÇÃO DE AMOR


Jim Dine
Jim Dine



Eu cantaria mesmo que tu não existisses,
faria amor, assim, com as palavras.
Eu cantaria mesmo que tu não existisses
porque haveria de doer-me a tua ausência.

Por isso canto. Alegre ou triste,canto.
Como se, cantando, tocasse a tua boca,
ainda antes da tua presença.
Direi mesmo, depois da tua morte.

Eu cantaria mesmo que tu não existisses,
ó minha amiga, doce companheira.
Eu festejo o teu corpo como um rio,
onde, exausto, chegarei ao mar.

Sim, eu cantaria mesmo que tu não existisses,
porque nada eu direi sem o teu nome.
Porque nada existe além da tua vida,
da tua pele macia, dos teus olhos magoados.

Assim quero cantar-te meu amor,
para além da morte, para além de tudo.


Joaquim Pessoa, Canções de Ex-cravo e Malviver







Ledo o meu amigo foi caçar no monte


h.d.r.
H.D.R.



Ledo o meu amigo foi caçar no monte,
Disseram-me as aves que o esperasse na fonte.
     Jovial o vento levou-me o vestido,
     Soltou-me o cabelo. E o resto não digo...

Que o esperasse na fonte disseram-me as aves.
A brisa movia as águas suaves.
     Jovial o vento levou-me o vestido,
     Soltou-me o cabelo. E o resto não digo...

A brisa movia as águas na fonte,
Logo sossegaram vindo ele do monte.
     Jovial o vento levou-me o vestido,
     Soltou-me o cabelo. E o resto não digo...

Logo sossegaram as águas suaves.
Vindo ele do monte, cantaram as aves.
     Jovial o vento levou-me o vestido,
     Soltou-me o cabelo. E o resto não digo...


Natália Correia, Cantigas de Amigo,
O Sol nas Noites e o Luar nos Dias, II








O AR OS TECTOS


Esti
Esti



Aqui o inverno mata as profissões que têm acesso ao ar,
a dos que andam por fora
por ruas e por roupas, com as vias da respiração
opressas
porque estão a erguer
casas de telha vã e pastoreiam
só animais que restam impolutos
das ribeiras cheias
de temporais e frutos
que nas águas tristes se despenham.

Como repetido é sempre o inverno,
com a chacina de animais,
com os ventos iguais que nos descoram,
as cornijas nas ruas devorando
os temporais
e nós, sem profissões libertas, também
a erguer os corpos
opressos pelos tectos.


Fiama Hasse Pais Brandão, (Este) Rosto







Virava todo o seu sentir para o mar


Corais
Maria José Camões




Virava todo o seu sentir para o mar
quando no medo dos míticos promontórios
se rasgou a oceânica visão... a ânsia de partir...

remotas eram as constelações que consultara
os rostos traziam a brancura queimada das velas...
... eram palavras segredadas lendas de feras
que os dedos e a matemática já tinham assinalado nos mapas
a vida da selva a flora mole dos pântanos
os costumes tribais dos arquipélagos
a prata das planícies o mistério de caudalosos rios...

... a tempestade sacudia o granito
da sua imobilidade surgiam estes sinais transparentes
estes animais cuja pelagem de ouro a noite corroeu
e os passos alucinados pelas lajes do porto
ressoavam no medo... medo que o mar o acorde
e descubra que não existe mar nenhum...

por fim atacaram-nos as febres
as febres da alba com perfume a violeta
as febres que iluminam os sentidos
e alimentam o surdo canto dos loucos e dos búzios...


Al Berto, Salsugem







Fermoso Tejo meu, quão diferente


Tejo.Novembro 2004



Fermoso Tejo meu, quão diferente
Te vejo e vi, me vês agora e viste:
Turvo te vejo a ti, tu a mim triste,
Claro te vi eu já, tu a mim contente.

A ti foi-te trocando a grossa enchente
A quem teu largo campo não resiste;
A mim trocou-me a vista em que consiste
O meu viver contente ou descontente.

Já que somos no mal participantes,
Sejamo-lo no bem. Oh! quem me dera
Que fôramos em tudo semelhantes!

Mas lá virá a fresca Primavera:
Tu tornarás a ser quem eras de antes,
Eu não sei se serei quem de antes era.


Francisco Rodrigues Lobo, Poesias







em fundo: a música do barroco



natureza morta com instrumentos de música, c.1650 Bergamo Galleria dell'Accademia Cerrara
Evaristo Baschenis



Contra as fadigas do desejo


E quem me compusera do desejo,
Que grande bem, que grande paz me dera!
Ou, por força, com ele hoje fizera,
Que me não vira, em quanto assi me vejo!

O que eu reprovo; eleje; e o que eu elejo,
Ele o reprova, como se tivera
Sortes a seu mandar, em que escolhera,
Contra as quais só por ele em vão pelejo.

Anda a voar do árduo ao impossível,
E para me perder de muitos modos,
Finge que a honra é certa no perigo.

Pois se nunca pretende o que é possível,
Como posso esperar ter paz com todos,
Quando não posso nem ter paz comigo?


D. Francisco Manuel de Melo, Obras Métricas, II







Lágrima


Tränen
Thomas Grabs



Bate-me o luar no rosto; e o meu olhar
Em lágrima saudosa se condensa.
Vejo-a diante de mim como suspensa
Na sombra do ar.

Em seu líquido seio de esplendor
Tua imagem começa a alvorecer,
Pois toma corpo vivo no meu ser
Quando a beija, sorrindo, a minha dor.

Ébria do teu espírito sagrado,
A radiosa lágrima estremece,
Enquanto minha face empalidece
E o luar e a noite cismam ao meu lado.

A comovida lágrima crepita...
Relâmpago de dor. Mas nada vejo!
E nela está presente o meu desejo
E a minha vida, frágil e infinita.

E a lágrima cintila, num adeus...
E, desprendida dos meus olhos, ei-la,
Já distante, no espaço; é nova estrela
Subindo aos céus.


Teixeira de Pascoaes, Elegias







CANCELA


Gatter in den Yorkshire Dales
Thomas C. Hertel



No meio da cerca está uma cancela
também ela fechada. O ar cingiu-a
com um donaire agreste de abandono.
E a cera e a madeira nela ficam
folha de zimbro e maré vagante.
Um dia certos ombros nela assomam,
noutros certos olhos dela partem
e olho a sua sombra com os pássaros
que vão para mais longe e nos entregam
os primeiros dias em que desce a noite
mais cedo, depois vem o inverno, o acolhimento,
a repousante canção dos cães a ladrar.
A cancela tem a marca dos meus dedos,
tantas vezes a abriram, tantas a fecharam,
a própria resina fareja na distância
cada passo meu que me aproxima
cada passo de alguém que não me alcança.
Guarda-me na casa onde outrora um outro
já não traz ao teu corpo esse prazer
que me forças, no vaivém, a abrir.


Joaquim Manuel Magalhães, A poeira levada pelo vento







Tristesse



Tristesse in Blau
Günter London



J'ai perdu ma force et ma vie,
Et mes amis et ma gaieté;
J'ai perdu jusqu'à la fierté
Qui faisait croire à mon génie.

Quand j'ai connu la Vérité,
J'ai cru que c'était une amie;
Quand je l'ai comprise et sentie,
J'en étais déjà dégoûté.

Et pourtant elle est éternelle,
Et ceux qui se sont passés d'elle
Ici-bas ont tout ignoré.

Dieu parle, il faut qu'on lui réponde.
Le seul bien qui me reste au monde
Est d'avoir quelquefois pleuré.


Musset,**





Creio


Amores.
Rafael



Creio nos anjos que andam pelo mundo,
Creio na Deusa com olhos de diamante,
Creio em amores lunares com piano ao fundo,
Creio nas lendas, nas fadas, nos atlantes,

Creio num engenho que falta mais fecundo
De harmonizar as partes dissonantes,
Creio que tudo é eterno num segundo,
Creio num céu futuro que houve dantes,

Creio nos deuses de um astral mais puro,
Na flor humilde que se encosta ao muro,
Creio na carne que enfeitiça o além,

Creio no incrível, nas coisas assombrosas,
Na ocupação do mundo pelas rosas,
Creio que o Amor tem asas de ouro. Ámen.


Natália Correia, Sonetos Românticos







EL MAR - O MAR


Guincho. Dezembro de 2004



Antes que el sueño (o el terror) tejiera
Mitologias y cosmogonias,
Antes que el tiempo se acuñara en dias,
El mar, el siempre mar, ya estaba y era.
Quién es el mar? Quién es aquel violento
Y antiguo ser que roe los pilares
De la tierra y es uno y muchos mares
Y abismo y resplandor y azar y viento?
Quien lo mira lo ve por vez primera,
Siempre. Com el asombro que las cosas
Elementales dejan, las hermosas
Tardes, la luna, el fuego de una hoguera.
Quién es el mar, quién soy? Lo sabre el dia
Ulterior que sucede a la agonia.


Jorge Luís Borges, El outro, el mismo




                        Antes que o sonho (ou o terror) tecesse
                        Mitologias e cosmogonias,
                        Antes que o tempo se cunhasse em dias,
                        O mar, o sempre mar, já estava e era.
                        Quem é o mar? Quem é aquele violento
                        E antigo ser que rói pilares
                        Da terra e é um e muitos mares
                        E abismo e esplendor e acaso e vento?
                        Quem para ele olhar vê-o pela primeira vez,
                        Sempre. Com o assombro que as coisas
                        Elementares deixam, as belas
                        Tardes, a lua, o fogo de uma fogueira.
                        Quem é o mar, quem sou? Sabê-lo-ei no dia
                        Que se segue à agonia.


                        Jorge Luís Borges. Trad.: José Agostinho Baptista
                        in O Mar na Poesia da América Latina







VARIAÇÕES SOBRE "O JOGADOR DO PIÃO",I


Kreisel eins
Gabi T.



Faz rodar o pião redondo tudo em volta
Atira a primavera e recupera o verão
Terras e tempos tudo assume esse pião
que rodopia e rouba o chão à folha solta

Joga tudo no gesto ríspido de vida
Reergue o braço a prumo arrisca nessa roda
riscada entre parede e tronco a infância toda
Tudo é redondo e torna ao ponto de partida

O sol a sombra a cal os pássaros os pés
o adro a pedra o frio os plátanos... Quem és?
Voltas? rodas? regressas? rodopias? nada

Mas do breve pião levanta ao céu a enxada
e que esta vida extensa para sempre seja
- será? - tão bem coberta que nem Deus a veja


Ruy Belo, Obra Poética de Ruy Belo, vol.1








Amo-te


Maxima Velocidad de la Madona de Rafael. 1954
Salvador Dali


Amo-te
com pressa
de não acabar o amor.


António Osório,
O Lugar do Amor e Décima Aurora







em fundo


foto: M. Wiora




Brahms, Um Requiem Alemão
Edith Mathis, soprano
Dietrich Fischer-Dieskau, barítono
Coro do Festival de Edimburgo
Orquestra Filarmónica de Londres
Daniel Barenboim









Embora o teu corpo às vezes se contorça


Guincho - Março 2005



Embora o teu corpo às vezes se contorça
Numa oscilação incerta e vaga,
Sei como é intacta e pura a tua força,
Sei como é absoluta a harmonia,
Que regressando nasce em cada vaga.

No infinito sorriso das espumas,
No chamar da maresia, no convite das brumas,
Na exaltação de cada maré cheia,
No teu ritmo de dança e bebedeira,
O que eu procuro e encontro extasiada,
É a tua alma viva, nunca profanada.


Sophia de Mello Breyner Andresen, Poesia







Gaivota


P. 29-3-2005


Se uma gaivota viesse
trazer-me o céu de Lisboa
no desenho que fizesse,
nesse céu onde o olhar
é uma asa que não voa,
esmorece e cai no mar.

Que perfeito coração
no meu peito bateria,
meu amor na tua mão,
nessa mão onde cabia
perfeito o meu coração.

Se um português marinheiro,
dos sete mares andarilho,
fosse quem sabe o primeiro
a contar-me o que inventasse,
se um olhar de novo brilho
no meu olhar se enlaçasse.

Que perfeito coração
no meu peito bateria,
meu amor na tua mão,
nessa mão onde cabia
perfeito o meu coração.

Se ao dizer adeus à vida
as aves todas do céu,
me dessem na despedida
o teu olhar derradeiro,
esse olhar que era só teu,
amor que foste o primeiro.

Que perfeito coração
no meu peito morreria,
meu amor na tua mão,
nessa mão onde perfeito
bateu o meu coração.


Letra: Alexandre O'Neill
Música: Alain Oulman
Canta: Amália Rodrigues